quinta-feira, fevereiro 27, 2020

Felicidade Clandestina (Clarice Lispector)


"Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A  felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar...Havia orgulho e pudor em mim", pág. 12.

Este ano decidi que em vista da comemoração do Centenário de Clarice Lispector priorizaria algumas de suas obras em minha lista de leitura. Até o momento adquiri duas obras: 'Felicidade Clandestina' e 'Perto do coração selvagem', sendo esta, 'Felicidade Clandestina', a que primeiro escolhi da autora para ler este ano. Essa obra é o meu segundo contato com a autora, o primeiro foi por meio de 'A hora da estrela', que em outra oportunidade irei partilhar a leitura aqui. 

Felicidade Clandestina é um livro em que a escritora reúne várias temáticas divididas em 25 contos, que tem por títulos, a exemplo de Uma amizade sincera; Restos do Carnaval; Come, meu filho; A mensagem; Primeiro beijo e Felicidade clandestina que dá nome ao livro, sendo este último um dos contos que particularmente mais gostei. "Às vezes sentava-me na rede balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante", pág. 12.

Gosto da escrita de Clarice, acredito que ela traz narrativas que buscam desvendar a essência humana. Considero que sua narrativa se configura hora simples e às vezes complexa, porém sempre bem estruturada com uma boa pitada de naturalidade ao trazer temas inseridos num contexto comum, que abordam a infância, juventude, a vida adulta e relações familiares, talvez para dizer que a felicidade pode estar nas coisas mais simples. "Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente", pág. 43 e 44. 




Ao relatar fatos do cotidiano, utilizando de assuntos corriqueiros, ela apresenta um recorte de narrativas, até mesmo histórias que aconteceram no próprio cotidiano da autora, em que o próprio leitor pode se identificar em algum momento, seja por meio de algum personagem, como se pode constatar neste exemplo em que dialoga com os filhos: "Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse francamente, confusa, sem saber se chegaria infelizmente a hora certa de perder a esperança: 
- É que não se mata aranha, me disseram que trás sorte...
- Mas ela vai esmigalhar a esperança! respondeu o menino com ferocidade", pág. 92.

Seu estilo não se prende muito a caracterização precisa dos lugares, dos personagens, mas a narrativa muitas vezes surpreende, dada as revelações dos personagens, suas angústias e percepções. "As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito", pág. 99.

É comum a presença de indagações e reflexões marcadas por conflito de ideias que podem ser observados na fala do narrador. "Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele", pág 44. 

Além de trazer também questionamentos ao tempo em que se procura estabelecer comparações. "Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que 'Deus' é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário quero chamar de Deus", pág. 45.

O que achei mais interessante e que marca uma das características da escrita de Clarice, é o fato da autora sempre reservar algo surpreendente para os personagens, revelando-os de forma totalmente diferente do que se poderia imaginar anteriormente. "...E de repente, com o coração batendo de desilusões, não suportei um instante mais - sem ter pegado o caderno corri para o parque, a mão na boca como se me tivesse quebrado os dentes. (...) Na minha impureza eu havia depositado a esperança de redenção nos adultos. A necessidade de acreditar na minha bondade futura fazia com que eu venerasse os grandes, que eu fizera à minha imagem, mas a uma imagem de mim enfim purificada pela penitência do crescimento, enfim liberta da alma suja de menina", pág. 113.


Gostei muito dessa leitura, super recomendo e já estou ansiosa para o próximo contato com a obra de Clarice Lispector!

Palavras-chaves: Felicidade - contos - simples - busca - Clarice - cotidiano

Título: Felicidade Clandestina
Autora: Clarice Lispector
Gênero: Conto Brasileiro
Editora: Rocco
Páginas: 160

Texto e foto: Analítica

quinta-feira, fevereiro 20, 2020

A bibliotecária de Auschwitz (Antonio G. Itube)




"Faz apenas alguns dias que Dita é a bibliotecária, mas parecem semanas ou meses. Em Auschwitz o tempo não corre, se arrasta. Gira a uma velocidade infinitamente mais lenta do que o resto do mundo", pág. 23. 

Título: A bibliotecária de Auschwitz
Autor: Antonio G. Itube
Páginas: 366
Gênero: Romance baseado em uma história real
Editora: Harper Collins

O romance 'A bibliotecária de Auschwitz' tem por cenário o campo de concentração de Auschiwitz localizado na Polônia, durante o período da Segunda Guerra Mundial, para onde Edita Adlerova e seus pais Hans e Elizabeth Adlerova são deportados. "Em Auschwitz a vida humana vale menos que nada, tem tão pouco valor que já nem se fuzila ninguém, pois uma bala é mais valiosa do que um homem. Há câmaras comunitárias onde se usa gás Zyklon porque barateia os custos e com um único barril dá para matar centenas de pessoas. A morte se tornou uma indústria que só é rentável se trabalharem por atacado", pág. 01.

A narrativa ressalta o cotidiano de outros personagens secundários e das pessoas com quem Dita passa a conviver no campo, a exemplo de Fredy Hirsch, Rude Rosenberg, a senhora Turnovská, a amiga Margit e sua irmã Helga, do professor Morgenstern e Mirian Edelstein.



A alternativa de se criar uma barracão infantil torna-se uma manobra do alto comando para manter as crianças entretidas enquanto seus pais trabalham no campo. "... desde que fosse um bloco de atividades lúdicas: estava terminantemente proibido o ensino de qualquer matéria escolar...manter as crianças entretidas num barracão facilitaria o trabalho dos pais naquele campo que chamavam de 'campo familiar' ", pág. 11 e 12. 

Ao conhecer Fredy Risch, ele lhe faz a proposta para ser a bibliotecária do barracão 31. "Mas é perigoso. Muito perigoso. Lidar com livros aqui não é brincadeira. Se alguém for pego pelo SS com livros, será executado" pág. 34. "O que tanto temem os implacáveis guardas do Reich são livros: livros velhos, desencadernados, desfolhados e quase desfeitos (...) sempre perseguiam os livros com verdadeira sanha. São muito perigosos, fazem pensar", pág. 13.

Desde então, Hirsch soube que ela cuidaria com esmero da biblioteca. "A menina tinha o vínculo que une algumas pessoas aos livros. "... se deu conta de que Dita tinha essa empatia que faz com que certas pessoas transformem um punhado de folhas num mundo inteiro só para elas. Mais do que uma bibliotecária desde esse dia ela se tornou uma enfermeira de livros", pág. 39.

Dita passa a preencher sua rotina com literatura, mesmo que essa tarefa tenha que ser em total sigilo. Afinal, esta é a forma que ela tem para passar o tempo. "Não era uma biblioteca extensa. Na verdade, era formada por oito livros e alguns deles em mau estado. Mas eram livros. Naquele lugar tão escuro...a presença dos livros era um vestígio de tempos menos lúgubres mais benignos, quando as palavras ressoavam mais do que as metralhadoras", pág. 36.

Em certo momento o enredo reporta a data de 15 de março de 1939, em Praga, local onde Dita morava, e quando foi rendida e deportada para o campo de concentração junto com a família. "Dita suspira agarrada aos livros. Ela se dá conta com tristeza de que foi nesse dia e não no de sua primeira menstruação que abandonou a infância, porque deixou de ter medo de esqueletos ou das velhas histórias de fantasmas e começou a temer os homens", pág. 20.

A tarefa diária de se dirigir aos fundos do bloco 31 para pegar os livros era uma ocupação prazerosa mas que exigia muito cuidado. E ela, muito habilidosa em sua função, usa de uma artifício sigiloso. "A menina espreme os livros contra o corpo e ao menos dessa vez, se alegra por não ter um peito avolumado. Seus seios infantis lhe permitem se acoplar aos livros discretamente. Seu braço dói por passar tanto tempo na mesma posição. Ela sente ferroadas, mas não se atreve a se mexer por medo de que os livros caiam no chão e façam barulho" pág. 27.

Um dos momentos mais tristes é relatado no trecho da morte do pai de Dita em condições precárias no alojamento. "Os que se vão, já não sofrem", assim a tentam consolá-la. "Dita abraça a mãe bem forte apertando-a. E sua mãe, por fim, chora", pág. 180. E também, posteriormente a morte misteriosa de seu amigo Fredy Hirsch, em 08 de março de 1944, passa a intrigá-la, principalmente pelo fato de ela não ter conseguido saber ao certo o que aconteceu, apesar das poucas oportunidades que teve para investigar.

Agora ela só tem a mãe e tem o dever de ficar perto e protegê-la. Quando acontece uma última seleção no campo de Auschwitz, ela e a mãe vão para o grupo de presas que ainda estão aptos a desenvolver algum trabalho. Elas comemoram por não terem sido selecionadas, como outras mulheres, para o grupo de não aptas, a qual destino é a quarentena, e consequentemente para serem mortas. 

Dita e a mãe, assim como outros presos foram deportadas para o campo de Bergen-Belsen, na Alemanha. É lá onde Dita reencontra a amiga Margit. A mãe e irmã de Margit não tiveram a mesma sorte, foram enviadas a quarentena e ficaram em Auschwitz. Nesse novo local, de Bergen-Belsen, as condições de higiene dos alojamentos não deixam de ser também miseráveis, e os presos costumam contrair 'tifo', doença infectocontagiosa bastante comum nos alojamentos dos campos de concentração. 

Um dos momentos que achei interessante, é quando a narrativa destaca uma conexão com outra história bem conhecida, a de 'Anne Frank', sob uma outra perspectiva. "A umas fileiras de distância de sua cama, duas irmãs com tifo estão perdendo a disputa pela vida. A mais jovem, Anne Frank se agita na cama, delirando em febre. Sua irmã, Margot, está ainda pior. As duas irmãs chegaram a Bergen-Belsen em outubro de 1944, vindas de Auschwitz e antes haviam sido deportadas de Amsterdã. Seus crimes: serem judias. Não resistiram às precárias condições nem ao tifo. Anne morre em sua miserável cama, na mais absoluta solidão, um dia depois da irmã", pág. 333. 

O fim da guerra em 1945, assinala um momento em que já não haviam quase esperanças para quem estava definhando nos campos de concentração, assim como a mãe de Dita que já estava muito doente. "A bibliotecária do bloco 31 começa a chorar. Chora por todos que não conseguiram chegar até ali...é a amargura da alegria", pág. 339. 

A escrita do autor não é cansativa e a narrativa sempre situa o leitor com detalhes do contexto histórico, como se pode confirmar nesse trecho: "O exército alemão se rendeu, Hitler se suicidou e os oficiais da SS se tornaram prisioneiros ou fugiram", pág. 342. 

Dita e a amiga Margit se despedem, mas desta vez fazem planos de se reencontrar e recomeçar uma nova vida em Praga. Mas a morte da mãe, deixa Dita sem rumo. Agora ela irá recomeçar sozinha. Ela reencontra com Ota Kraus, um velho conhecido dos tempos de Auschiwitz com quem fortalece os vínculos de amizade. Volta para Praga seguindo a orientação da amiga Margit. Tempos depois Dita se casa com Ota, se muda para Israel, em 1949 tem seu primeiro filho, também termina os estudos e mantem contato com Margit e sua família. O marido de Dita faleceu em 2006, mas antes escreveu um livro intitulado de "The painted wall" que conta vários relatos sobre a guerra.


Ao final da obra, "A bibliotecária de Auschwitz", o autor Antonio G. Itube revela com minúcia, desde a intenção de escrever o livro, do contato que ele teve com Edita aos 80 anos, na oportunidade em que ele adquiriu o livro de seu marido "The painted wall". Ele fala como foi esse encontro com ela e da experiência que teve ao lado de Edita e de ouvir seus depoimentos que posteriormente se tornaram fundamento para nortear e basear o enredo deste livro. 

Considero que essa obra destaca a força de uma menina que perdeu tudo em meio a guerra e teve que recomeçar sozinha, que teve a literatura como importante aliada para superar seus medos e ilustrar os momentos mais tristes. Ela venceu a guerra e teve uma segunda oportunidade para reconstruir sua vida. Se casou com uma pessoa que conheceu dentro do campo de concentração, teve três filhos, superou a morte de um e também do marido e mesmo idosa ainda não media esforços para divulgar a obra escrita pelo marido, fazendo sua parte para não deixar que relatos dessa história se perdesse.

Aprecio muito livros que se baseiam em histórias reais. Este livro, em particular, já estava em minha lista, desde que li o primeiro livro que relata sobre Segunda Guerra Mundial. Li e recomendo!

Texto e fotos: Analítica




terça-feira, fevereiro 18, 2020

'Terno da Cidade' - O resgate de uma tradição de São Desidério



Uma tradição antiga de São Desidério foi resgatada na noite de segunda-feira 17 de fevereiro, na abertura das comemorações do aniversário de 58 anos do município. O Terno da Cidade, realizou um cortejo pelas ruas da cidade sendo acompanhado pelo público e culminou com apresentações de cantigas realizadas na Lavanderia Cultural. A iniciativa do resgate Cultural foi do Conselho Municipal de Cultura por meio do Projeto 'Encontro de Gerações' e contou com participação de membros do Grupo da Melhor Idade Pe. Jacy, jovens e músicos da cidade convidados.





História - O terno é uma manifestação açoriana realizada por meio da cantoria acompanhada por instrumentos musicais.  Em São Desidério a iniciativa de realizar os ternos se deu na década de 1950 pelo maestro Heliodoro Alves Ribeiro, figura ilustre e um dos incentivadores da cultura local, que realizou várias modalidades de terno, a exemplo do Terno dos Estados, da Bandeira e das Pastorinhas, este último acontecia no período do Natal até janeiro. Em 2002 e 2009 por meio do Grupo da Melhor Idade e de participantes convidados o Terno das Pastorinhas foi resgatado na comunidade.

Terno dos Estados

Analítica




Dica de Leitura: Amar, verbo intransitivo (Mário de Andrade)

  “As conveniências muitas vezes prolongam a infelicidade”. Em ‘Amar, verbo intransitivo’, embarcamos com Mário de Andrade, em uma obra cara...