segunda-feira, outubro 26, 2020

Tudo de bom vai acontecer (Sefi Atta)


"Ela era minha amiga mais antiga, minha melhor amiga. Havíamos nos afastado em certa época, e às vezes a amizade parecia inconstante, como ocorre com quase todas as irmãs, e ela foi mais perto que eu cheguei de ter uma irmã nesse lugar onde as famílias não cansavam de se expandir", página 232. De autoria de Sefi Atta, 'Tudo de bom vai acontecer' é uma obra que segue a linha de temáticas africanas selecionadas pela @Tag Livros Experiências Literárias. O livro conta a história de Enitan, uma garota nigeriana de classe média que mora com os pais e sua amizade com Sheri, que tem a mesma idade. A narrativa é dividida em três períodos (1971, 1985 e 1995) e situa o leitor no tempo. 

A princípio o enredo se passa na cidade de Lagos, marcado pelas memórias de infância de Enitan e o seu primeiro contato com a amiga Sheri Bakare. O pai de Enitan é advogado e a mãe, do lar, que após perder o filho aos três anos, tornou-se oprimida pelo marido, recorre à religião. "Eu já estava começando a ficar entediada de tanto esperar quando duas semanas antes do fim das férias tudo mudou. Era o terceiro domingo de setembro de 1971", página 15. Não se trata de uma amizade aprovada pela mãe de Enitan, mesmo assim a garota faz de tudo para ver a amiga, nem que seja escondido na casa dos Bakare, aos domingos, quando sua mãe está na igreja. "A semana toda fiquei ansiosa para ir a casa de Sheri. As vezes passava pela aleia de hibiscos esperando que ela aparecesse", página 29. 

Sheri é muçulmana, filha de Alhaji Bakare que tem duas esposas. "Nossa casa só tinha um andar e era coberta de alamandas amarelas e buganviles. A dos Bakare era uma casa enorme de um andar, com venezianas de vidro azul claro, tão quadradona que aos meus olhos parecia um castelo", página 30. A amizade entre as duas garotas irá permear ao longo da narrativa. "Sheri havia me guiado até o limite entre o consentimento dos pais e a desaprovação deles", página 49.


"Chegamos a nossa casa e eu andei até o quintal dos fundos, junto à cerca onde cresciam os hibiscos", página 78. O contexto histórico que fundamenta o enredo é atribuído à Guerra Civil de Biafra, que mesmo tendo seu fim em 1970 tem seus reflexos e sempre é citada na narrativa. Enitan escuta atenta as conversas sobre a guerra entre os familiares, embora não estivesse interessada, nesse momento, em reformas políticas do país. Sem perder os laços com a amiga Sheri, Enitan frequenta o colégio Royal College, mas sempre se corresponde com Sheri por cartas. Com personalidade mais reservada que a amiga, Enitan , ela a acha avançada demais, diferente e atrevida. Um dos momentos mais marcantes da narrativa, sem dúvida, é quando Enitan presencia o estupro da amiga.  

Na segunda fase do livro, a jovem Enitan mora em Londres onde cursa direito na universidade. Seus pais se separam e ao terminar a faculdade retorna à Nigéria cheia de esperança. Outro fato que marca esse período é seu reencontro com a velha amiga Sheri. "Sheri ganhou peso ao longo dos anos. (...) Mas perdera quase toda a alegria da infância. Muitas vezes eu me lembrava da época em que ela ria até os hibiscos caírem do seu penteado afro, o que ainda me fazia chorar de rir", página 232.


Na terceira e última parte, Enitan, uma mulher mais madura, trabalha no escritório do pai. No reencontro com Sheri, ela descobre que a amiga agora tem uma casa e uma vida com luxos sustentada por um velho brigadeiro. Enitan incentiva a amiga a abrir um negócio próprio para alcançar sua liberdade financeira. Uma reviravolta marca a narrativa quando Enitan descobre o relacionamento extraconjugal do pai, a quem sempre admirou, e que ela tem um irmão. Ela sai da casa do pai e vai morar com a amiga Sheri. Enitan nessa fase se mostra mais interessada em se envolver com as causas políticas de seu país e conhece a jornalista Grace Ameh que a convida para lutar contra o atual regime militar. "Dizem que a democracia está à venda. Além do mais seus líderes são coagidos. Não podem nos ajudar se isso prejudicar seus eleitores. Teremos sempre que procurar nossas próprias soluções. Eu tenho fé na África um continente que pode produzir um Mandela. Tenho fé", página 353.

Quando Enitan conhece o marido Niyi e engravida, percebe que seu casamento não é o que ela esperava e vai de encontro a tudo o que ela protestou a vida toda, e resolve separar-se dele. Por meio da jornalista Grace, Enitan tem notícias do pai. "Dois meses depois tive notícias de meu pai. Ele esteve preso durante dez meses. Nosso país passava por um tumulto internacional por causa do enforcamento de nove ativistas ambientais do Delta Níger, incluindo o escritor Ken Saro-Wiwa. Nosso governo manteve-se irredutível", página 364. Enitan se separa de Niyi e volta a morar na casa que era de sua mãe. Quando o pai é solto e ela está a caminho de encontrá-lo, sente-se realmente liberta, feliz e com a expectativa de que 'Tudo de bom vai acontecer' a partir daquele momento. "Nada poderia tirar minha alegria. O sol me enviava sua benção. Meu suor me batizava", página 367.

O livro apresenta por meio da vivência da personagem de Enitan e de sua amiga Sheri, uma visão abrangente de como é crescer mulher na Nigéria. Narrada em primeira pessoa pela protagonista Enitan, que apesar  de pertencer a uma família de classe média e ter privilégios com relação à amiga Sheri, sua trajetória de 25 anos, marcada pelo machismo e formas de violência. Não deixa de ser uma história de superação, por mostrar que apesar do preconceito vivido por essas mulheres, elas mantém ideais de independência, mudança e conseguem realizar sonhos, frequentar uma faculdade e ir em busca de sua própria liberdade, como aconteceu com Enitan e Sheri.  

* Uma referência que a narrativa atribui em algumas passagens são citações voltadas às flores 'hibiscos' e 'alamandas', sempre presentes nas memórias de Enitan, seja na frente das casas ou para enfeitar os cabelos de sua amiga Sheri. Por isso utilizei as duas flores, que gosto muito e que tenho em casa para compor as fotos produzidas para essa postagem.

Texto e foto: Analítica

terça-feira, outubro 20, 2020

A culpa é das estrelas (John Green)

 


"Alguns infinitos são maiores que outros. Há dias, muitos deles, em que fico zangada com o tamanho do meu conjunto ilimitado. Queria mais números do que provavelmente vou ter, e, por Deus queria mais números para o Augustus Waters do que os que ele teve. Mas Gus, meu amor, você não imagina o tamanho da minha gratidão pelo nosso pequeno infinito. Eu não trocaria por nada esse mundo. Você me deu uma eternidade dentro dos nossos dias numerados e sou muito grata por isso", página 182. 

"O verdadeiro amor nasce em tempos difíceis". 'A culpa é das estrelas' de John Green, é um romance fictício que destaca a história de Hazel Grace (16) e Augustus Waters (17), o garoto por quem ela conhece no Grupo de Apoio a Crianças com Câncer. Dependente de um cilindro de oxigênio, a qual o chama carinhosamente de Felipe, Hazel tem tireoide com metástase nos pulmões e Gus osteossarcoma. Diagnosticados com câncer terminal, os dois jovens vão aproveitar o tempo que têm para viver intensamente uma história de amor. "Sem dor não poderíamos reconhecer o prazer".

Um dos pontos que o enredo destaca e que me atraiu muito na narrativa é o foco dado à leitura. Da discussão literária dos protagonistas sobre um livro 'Uma aflição imperial', nasce a ideia dos dois visitarem o autor dessa obra, Peter Van Houten, em Amsterdã, para saberem acerca de uma possível continuação da obra e que fim tiveram os personagens. 

Na viagem dos dois a Amsterdã, acompanhados da mãe de Hazel, o casal tem uma grande decepção no encontro com o tal escritor. Mas a viagem agrega outros momentos que são inesquecíveis para a relação de Hazel e Gus: o jantar regado a champanhe no restaurante Oranjee, a visita a casa/museu de Anne Frank onde acontece o primeiro beijo dos dois assistido e aplaudido por outros visitantes e a primeira transa deles no retorno ao hotel. "Estou apaixonado por você e sei que o amor é apenas um grito no vácuo, e que  o esquecimento é inevitável, e que estamos todos condenados ao fim, e que haverá um dia em que tudo o que fizemos voltará ao pó", página 109.

De volta da viagem, o romance de Hazel e Gus terá seus últimos capítulos escritos e mesmo com pouco tempo, os dois vão aproveitar cada instante desse amor para torná-lo inesquecível. "As pessoas vão dizer que é triste o fato de ela deixar uma cicatriz menor, que menos pessoas se lembrem dela, que ela tenha sido muito amada mas não por muita gente. Mas isso não é triste, Van Houten. É triunfante. É heróico", páginas 218.

Já conhecia a história de Hazel e Gus por meio do filme, mas somente agora tive contato com a obra literária - muito embora sempre costumo fazer o contrário - e adquirir o livro. A obra se configura em uma narrativa recheada de detalhes em que John Green utiliza uma escrita bem simples para falar de um tema que se tornou comum, mas tratado de maneira alegre e tão emocionante, baseada na trajetória de vida de dois jovens e do pouco tempo que eles têm juntos para viver um grande amor. "Não dá para escolher se você vai ou não vai se ferir neste mundo, mas é possível escolher quem vai feri-lo. Eu aceito as minhas escolhas. Espero que a Hazel aceite as dela", página 219. 

  
Texto e foto: Analítica

Dica de Leitura: Amar, verbo intransitivo (Mário de Andrade)

  “As conveniências muitas vezes prolongam a infelicidade”. Em ‘Amar, verbo intransitivo’, embarcamos com Mário de Andrade, em uma obra cara...