terça-feira, abril 28, 2020

Perto do coração selvagem (Clarice Lispector)


"E de instante a instante caía mais fundo dentro de si própria, em cavernas de  luz leitosa, a respiração vibrante, cheia de medo e felicidade pela jornada, talvez como as quedas quando se dorme", página 192.

Escolhi 'Perto do coração selvagem', de Clarice Lispector, uma leitura leve para encerrar esse conturbado mês de abril. Como já havia falado em outra postagem anterior, o Analítica partilhará algumas leituras de Clarice em homenagem ao ano do centenário dessa que foi uma das maiores escritoras do século XX.

Escrito em meados dos anos 40, esse romance assinala a estreia de Clarice como escritora. A narrativa não tem uma sequência cronológica e a obra é dividida em duas partes. "...se tinha alguma dor e se enquanto doía ela olhava os ponteiros do relógio, via então que os minutos contados no relógio iam passando e a dor continuava doendo", página 16.

A trama gira em torno da personagem central, Joana, que depois que fica órfã, rejeitada pela tia, vai morar em um internato, onde se apaixona por um professor. Casa-se com Otávio, fica grávida e não vive bem essa gravidez, pois descobre que o marido tem uma amante que se chama Lívia que também está grávida. Com o tempo ela se separa de Otávio, conhece outro homem e embarca em uma viagem. 

Típico do estilo de Clarice, é um romance que oferece uma leitura agradável e a narrativa não é cansativa. Gosto da escrita da autora, a sensibilidade literária e de como ela concentra a importância de valores e as relações familiares mostrando com certa complexidade o perfil dos personagens, nesse caso específico, a protagonista Joana e sua busca pelo autoconhecimento, seus problemas, conflitos, medos, dúvidas, alegrias, o seu  convívio conturbado ao mesmo tempo em que realiza descobertas.

Entre os capítulos que mais gostei destaco o último que tem por título 'A viagem', por apresentar a desilusão de Joana que sai sem destino em busca de respostas na tentativa de desvendar o seu próprio eu.   

"Ah Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta-me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte sem medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo", página 202.

Texto e foto: Por Analítica







sexta-feira, abril 24, 2020

Um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias (Flannery O'Connor)


Demorei mas consegui concluí a leitura de 'Um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias', de autoria da escritora Flannery  O'Connor. Esse é um dos livros que conheci por meio da assinatura da Tag Livros Curadoria, uma experiência a qual aderi no início do ano com o propósito de diversificar minhas leituras e conhecer novos autores. É interessante que por meio dessa assinatura também pude conhecer e interagir com outros assinantes da Tag e partilhar as impressões acerca dos livros lidos nos encontros do grupo, no caso socializo com o grupo Tag Curadoria Barreiras. 

As histórias tem por cenário a região sul dos Estados Unidos e o livro é divido em 10 contos. A autora possui uma linguagem de fácil entendimento e as narrativas são marcadas pelo simbolismo religioso em que a religião é colocada também como forma para criticar as atitudes e valores de alguns personagens. Também estão presentes discussões envolvendo relações familiares e em certos momentos a abordagem de questões racistas. 

Dos 10  contos, três me chamaram a atenção por apresentarem histórias mais envolventes. São eles, o primeiro conto, que recebeu o mesmo título do livro 'Um homem bom é difícil de encontrar',  ao  qual relata a história de uma família que durante uma viagem de carro sofre um acidente e que por azar recebem ajuda de um prisioneiro foragido, o mesmo que irá tirar a vida de toda a família. "Não dona, não sou bom, não. (...) Mas também não sou o pior do mundo. Meu pai dizia que eu era de outra raça, diferente dos meus irmãos e irmãs", página 42.

O segundo conto que mais gostei tem como tema 'A vida que você salva pode ser a sua' e se baseia um pouco na própria história de vida da autora ou do que se sabe sobre ela. A narrativa assinala acerca de como interesses pessoais muitas vezes ultrapassam os interesses coletivos. E nesse conto destaca-se até que ponto uma senhora, convencida facilmente pelo discurso de um forasteiro, por interesses pessoais ou sabe se lá quais tenham sido, ela vê nisso uma oportunidade para vender a própria filha que tinha limitações de saúde. E neste conto mais uma vez Flanerry deixa a tona um final surpreendente. "Para certos homens", disse então lentamente, "há certas coisas que valem mais do que o dinheiro", página 77. "Dirija com atenção. A vida que você salva pode ser a sua!", página 86.

E o terceiro conto que destaco é 'Gente boa da roça' em que a contradição abordada pela autora na narrativa está bastante implícita. Um vendedor de bíblias que tenta convencer uma senhora com seu discurso. Essa senhora tem uma filha cética, doutora em filosofia, que acredita piamente na ciência e que apresenta uma deficiência física e que por esse motivo utiliza uma perna de pau. Uma reviravolta no final da história surpreende o leitor e acredita-se que a autora nesse conto fez uma crítica àqueles que de certa forma, abusam da boa vontade das pessoas para enganá-las.

A Literatura Gótica norteia o estilo da autora. Geralmente esse não é o tipo de estilo que me atrai, pois não me identifico muito, se eu puder escolher, nunca escolho obras desse estilo, não sei explicar o por quê. Mas de certa forma gostei do livro e me chamou a atenção o jeito surpreendente como a autora colocou as histórias e como em cada conto ela sempre reservava um final surpreendente e chocante.

Texto e foto: Analítica   



Minhas memórias da Vó Si






Avó é como segunda mãe. São muitas as lembranças que tenho da Vó Si. A única avó que conheci. Na sua humildade, Sizaltina Dourado de Santana, ou Dona Si, como era carinhosamente conhecida, foi exemplo de mulher guerreira, alegre, acolhedora, bondosa, sábia. Não era difícil lhe arrancar um sorriso e logo se contagiar com sua gargalhada. Com ela, a resposta era rápida, mas sempre nos envolvia com seu jeito meigo, atencioso, dedicado, de quem sempre queria ajeitar a todos. 


Foi boa companheira, mãe, avó, bisavó, irmã, tia, amiga, comadre, vizinha, costureira, bordadeira e muito religiosa. Foi casada com Jose de Santana, conhecido por Zé Magro (falecido em 2010), com quem compartilhou 60 anos de vida matrimonial. Teve cinco filhos, 16 netos e 15 bisnetos. Lembro-me de quando ainda pequena costumava ir brincar na casa da vó com minhas primas. Da merenda que ela preparava pra gente, do quintal cheio de plantas que ela cuidava com tanto zelo. Do pé de manga onde costumávamos subir e aprontar algumas estripulias, temendo que a vó descobrisse.


Além de costureira, ofício que praticou por muito tempo na velha máquina de costura encostada na copa da cozinha, Vó era uma bordadeira de primeira. Ela sempre dizia que aprendeu a bordar ponto cruz quando tinha 12 anos. Um legado que não guardou apenas pra si. Na década de 1990, juntamente com outras mulheres da comunidade, foi voluntária num antigo Projeto da Paróquia Nossa Senhora Aparecida, ensinando muitas pessoas a bordar ponto cruz. Já em casa, tínhamos como mestra uma das mais exímias bordadeiras de São Desidério. Uma arte que foi passada para as netas. As primeiras aulas eram reservadas a pequenos pedaços de pano que aos poucos eram preenchidos, e os desenhos ganhavam formatos de laranjas, maçãs, peras, quadrados, losangos. Paciente para ensinar, ela exigia que o avesso do bordado fosse limpo. Só depois disso é que estávamos preparadas para fazer bordados em guardanapos, panos de pratos e posteriormente bordar nomes em toalhas de banho, fase que já assinalava progresso. 

Àquelas que se dedicaram mais, alçaram desafios maiores. Bordados em almofadas, caminhos de mesa, jogos de cozinha, entre outros. Mas talvez o sonho das netas seria dominar bordados mais difíceis, como as enormes toalhas de mesa, denominadas de 'toalhas de banquete' que a vó tanto fazia e que lhe eram exigidos meses de trabalho e dedicação. Uma das características de seu bordado é que o fazia com amor e capricho, motivos que a fazia receber muitas encomendas de outras cidades e até mesmo de outros estados. O bordado sempre deu o tom da ornamentação na casa da vó, seja por sobre o fogão, da mesa da sala, da antiga prateleira da cozinha, no aparador do filtro, nas almofadas, nos guardanapos da estante.



E como esquecer a devoção por Santo Reis e as lapinhas de Natal, de vê-la montar o presépio. Na primeira sala da casa, no dia 24 de dezembro os sofás davam lugar a lapinha. Ainda sinto o cheiro da cola feita da tapioca que ela fazia a seu modo para fixar o papel madeira rosa no antigo caixote de madeira e que posteriormente era preenchido com as plantas, a areia, palha, os santos e muitas luzes. Mas o ‘Menino Deus’, como ela chamava, só era colocado na lapinha à meia noite. Com o passar dos anos, assumimos de vez a função de montar a lapinha para ajudar a Vó. Das primeiras vezes ela ficava muito nervosa porque ainda não dominávamos os traquejos do tal ofício e assim ela questionava: 

- Ô menina cadê a boca da lapinha? Vocês não sabem fazer lapinha não. Deixa que eu faço, eu só vou colocar o santo mesmo!

A ‘boca da lapinha’ que ela se referia tratava-se de um formato triangular, seja por meio de plantas ou do próprio papel que ao final se configurava em uma gruta, deixando transparecer uma entrada com destaque para onde se apresentam os santos. Nos anos seguintes ela até ficou mais calma e deixou que tomássemos conta de vez da tarefa, mas sempre dando seus ‘pitacos’ de longe. Na verdade ela sempre dizia que todo ano só ia colocar o santo mesmo. Quando terminava a montagem ela sempre aprovava o resultado final:

- Mas ficou linda minha lapinha! Admirava.


As rezas na lapinha ocorriam no dia 24 à noite, depois da missa do Galo e no dia 06 de janeiro, dia de Santo Reis, após meio dia. A tradição da lapinha de Natal ela sempre dizia ter iniciado ainda menina, quando começou a fazer a lapinha por brincadeira. Depois fez uma promessa que foi cumprida por mais de 70 anos. E como ela gostava de receber as rezadeiras em sua casa e de cantar os benditos ‘Chegai Jesus, chegai’, ‘Viva o santo Nascimento’, ‘Noite Feliz’, ‘Dizei nos pastores’, ‘Viva Menino Deus’, do ‘Adeus minha lapinha cercada de flor’, e de tantos outros.





Dias antes da lapinha, era feita toda uma preparação. Uma delas, se tratava de fazer os biscoitos, a pêta e o ginete e os bolos. No fundo da casa da Vó havia um forno à lenha. No dia de fazer os biscoitos, o forno era aceso pela manhã, logo cedo e durante todo o dia era um grande movimento. A vizinhança logo percebia que na casa da Si era dia de fazer biscoito. Primeiro eram feitos as pêtas. Lembro de pegar a peta já assada e quente e molhar na massa crua que ficava no tacho de alumínio. Depois era a vez de reunir as netas e quem mais estivesse presente para ajudar a fazer o ginete, um biscoito doce. Esse era um dos momentos mais esperados. Sentadas em uma roda, cada uma com sua devida fôrma – que geralmente eram latas de sardinha vazias furadas ao centro e pontas picotadas para baixo – o bolo de massa era pressionado e ganhava formato de ‘S’ e aos poucos preenchia as bandejas no colo. Quando a Vó saia de perto, essa era a oportunidade para saborear rapidamente a deliciosa massa crua. E quando ela retornava lá estávamos com as bochechas alteradas tentando disfarçar os bolos de massa. E era nos repreendia: 

- Por isso que o ginete não rende aqui! E riamos.

Ao fim da tarde, após assar os ginetes, quando o forno já não estava tão quente, era hora de assar os bolos de milho e de puba. Outro preparativo para a lapinha era a batida de jenipapo. A Vó ia na Fazenda Amaralina, onde morava sua cunhada e comadre Bia para apanhar os jenipapos. Fazia as batidas e as reservava em frascos vazios de refrigerantes na geladeira para servir na noite de 24. A gente sempre tomava escondido da Vó quando íamos rezar à noite na lapinha no intervalo entre os dias 24 e 06.




A religiosidade era uma de suas marcas. Católica fervorosa e dizimista, sempre teve muita devoção pelo Divino Espírito Santo e por Nossa Senhora Aparecida, festejos tradicionais da cidade que ela acompanhava desde a infância. Enquanto pode, nunca faltava uma missa e sempre frequentava as rezas do Ofício de Nossa Senhora na Igreja Matriz, nas noites de sábado. A oração do ‘Pranto de Nossa Senhora’ ela nunca esquecia de rezar na Sexta-feira da Paixão. Foi com ela que comecei a ir à igreja quando ainda era pequena. Sua caminhada de fé foi um exemplo para seus familiares. Lembro de vê-la rezar o terço e com ela aprendi a rezá-lo também.

Em julho de 2016, após uma queda em casa, ela fraturou o fêmur direito e esteve hospitalizada. Nas noites em que estava com ela no hospital, sempre pedia para rezarmos o terço que ficava em seu leito. A sua força permitiu vencer três pneumonias nesse período e ela retornou para sua casa, embora com a difícil tarefa de conviver com as limitações físicas mas feliz por reencontrar parentes e amigos que sempre iam visita-la e tomar um café. Em maio de 2018 foi novamente hospitalizada com pneumonia, e mais uma vez conseguiu se recuperar mostrando sua força. Nesse período de pandemia, as circunstâncias do momento exigiam mais cuidado. Foi preciso uma mudança provisória de lar. Embora não estivesse em seu cantinho, tudo o que foi feito, foi com muito carinho, pensando em sua saúde, seu bem estar, sua segurança. Após mais uma internação ela não resistiu à pneumonia e nos deixou em 16 de abril, aos 89 anos.




As imagens dos últimos momentos ao seu lado, no leito, rezando o terço pra senhora ficar boa, de passar a mão por sua cabecinha branquinha, de segurar a sua mão cada vez que a senhora chamava, de cantar ‘Cura Senhor onde dói’ e outras canções que a senhora gostava para te acalmar e na esperança de te ver melhor, para voltar logo para casa. Mas prefiro ficar com as lembranças dos momentos felizes. Das oportunidades de te dar banho, de botar na cama para dormir, de cortar o seu cabelo escondido, do seu cheirinho, de suas risadas, de aprontar algumas brincadeiras para tirar fotos só pra te ver sorrir, dos desenhos que a senhora gostava de pintar, das leituras em voz alta, de passar para te ver, para pedir a ‘bença’ e saber como estava, de sentar no batente da porta da rua em sua companhia tomando café, dos teus conselhos, suas histórias, ensinamentos, sua alegria, sua fé! Agradeço a Deus por ter tido a oportunidade de ter uma avó tão maravilhosa. Ficam os bons exemplos e muita, muita saudade!







Texto e fotos: Ana Lúcia Souza



terça-feira, abril 07, 2020

Analítica faz 10 anos


Há dez anos nascia o Analítica, idealizado por uma jornalista recém formada, amante da leitura, fotografia e Rock'n'roll e com muitos sonhos. O blog torna-se um painel de impressões pessoais, com o intuito de partilhar algumas loucuras, experiências, recortes do cotidiano de personagens históricos, lugares interessantes visitados, manifestações culturais, leituras realizadas, e o que mais merecesse ser registrado.

Dez anos se passaram, alguns sonhos realizados, outros postergados ou simplesmente esquecidos e o Analítica resiste. E hoje, Dia do Jornalista, o blog celebra uma década de existência em meio ao período de pandemia do Coronavírus. Este post comemorativo deseja que sigamos com muita fé e esperança acreditando que tudo isso VAI PASSAR! Continuemos em casa, seguindo as recomendações da OMS e fazendo nossa parte de cidadãos conscientes!

Hoje também, data em que se comemora o Dia Mundial da Saúde, sensibilizamos com os profissionais da área da saúde que se encontram na linha de frente dessa situação. Enquanto isso, vamos aproveitar o tempo livre em que ficamos em casa para fazer nossas orações e  outras atividades, a exemplo da leitura que é um passa tempo prazeroso.



   
As fotos deste post contam com uma caneca com ilustrações alusivas aos 10 anos do Analítica produzida pela Cubo Biscuit.

#blogAnalítica10anos


Texto e fotos: Analítica

Dica de Leitura: Amar, verbo intransitivo (Mário de Andrade)

  “As conveniências muitas vezes prolongam a infelicidade”. Em ‘Amar, verbo intransitivo’, embarcamos com Mário de Andrade, em uma obra cara...