quarta-feira, dezembro 30, 2020

Retrospectiva literária 2020

 


E 2020 chega ao final após ter cumprido a meta literária estabelecida no início do ano, de realizar pelo menos duas leituras por mês. O Analítica registra neste post as 25 leituras realizadas:
Janeiro: Cem anos de solidão (Gabriel Garcia Marquez) e Adeus, Gana (Taiye Selasi);
Fevereiro: A Bibliotecária de Auschwitz (Antonio G. Iturbe) e Felicidade clandestina (Clarice Lispector);
Março: O segredo de Frida Kahlo (F. G. Haghenbeck) e Estação Atocha (Ben Lerner);
Abril: Um homem bom é difícil de encontrar (Flannery O'Connor) e Perto do coração selvagem (Clarice Lispector);
Maio: Ponto cardeal (Léonor de Récondo) e A hora da estrela (Clarice Lispector);
Junho: A terceira vida de Grange Copeland (Alice Walker) e Todos os nossos ontens (Natalia Ginzburg);
Julho: Sul da fronteira, oeste do sol (Haruki Murakami) e Os últimos sete meses de Anne Frank (Willy Lindwer);
Agosto: A cabana e A travessia do mesmo autor (Willian P. Young) e Afirma Pereira (Antonio Tabucchi);
Setembro: O menino do pijama listrado (John Boyne/Oliver Jeffers) e A síndrome de Aquiles (Mário Rosa);
Outubro: A culpa é das estrelas (John Green) e Tudo de bom vai acontecer (Sefi Atta);
Novembro: Minha vida de rata (Joyce Carol Oates) e O dia em que a poesia derrubou um ditador (Antonio Skármeta);
Dezembro: Alegrias da maternidade (Buchi Emecheta) e Moisés negro (Alain Mabanckou);

Tag Livros Experiências Literárias


Doze dos livros lidos são indicações da Tag Livros Experiências Literárias de 2020 na modalidade Curadoria, a qual o Analítica é associado desde o início do ano e um da edição de 2017. Trata-se de um clube de assinatura de livros que entrega em casa, mensalmente, uma caixinha com experiências literárias exclusivas para mais de mais de 60 mil assinantes em todo o país. 

Para mim tem sido uma experiência fantástica porque tem ajudado a intensificar, diversificar e dinamizar minhas leituras, além de poder participar e interagir em um grupo de leitores Tag Curadoria Barreiras, ao qual se reúne uma vez por mês para discutir as obras indicadas .  Que venha 2021 com mais experiências literárias!

Por Analítica





terça-feira, dezembro 29, 2020

Ler, plantar, cozinhar, pedalar

 

Nas horas que se tornam vazias
E o tempo parece não passar,
São como entretenimento, 
E fazem a cabeça parar de preocupar


Os melhores passa-tempos 
Tornaram-se hábitos do dia-a-dia
Coisas simples de se fazer
Sem qualquer compromisso, terapia


Ler o que se propõe, intensificar a leitura
Colocar no lugar dos personagens mais marcantes
Do tempo, lugares das histórias dos livros que li
E cristalizar na memória os que foi mais emocionante


Plantar, cuidar das plantas de casa, 
Dar mais atenção, cultivar mais flores
Elas enfeitam meu jardim
Dou-lhe nomes e elas dão mais vida, e mais cores


Cozinhar, testar novas receitas
Inventar, como se a receita fosse minha
Tentar, errar, criar, acertar o gosto
Experimentar novos sabores e divertir na cozinha



Pedalar, sair por aí, 
Sentir o vento bater no rosto, 
Contemplar lindas paisagens
E voltar satisfeita e feliz, sem nenhum desgosto

Enquanto tudo é registrado
E para que disso tudo lembraria
Que horas ruins também passam
E que tudo se ajeita um dia


Enquanto isso continuo a ler, plantar, cozinhar, pedalar 
Pois é preciso permitir, viver novos hábitos, 
Não preocupar tanto, pois tudo tem seu tempo
E a mudança vem de dentro

 

Por Analítica


quinta-feira, dezembro 17, 2020

Minhas lembranças das lapinhas da Vó Si



Nesse período em que se aproxima o Natal, as minhas melhores lembranças estão atreladas a figura da minha avó dona Si (in memorian). Cresci vendo-a montar a lapinha no dia 24 de dezembro, uma tradição que ela iniciou aos 13 anos e manteve  por mais de 70 anos. As rezas na lapinha aconteciam nos dias 24, após a missa do galo, e na tarde de 06 de janeiro, dia de Santo Reis. A lapinha era desmanchada em 07 de janeiro.

Enquanto ela mesma conseguiu montar a sua lapinha, costumava fazê-la no dia 24 de dezembro, obedecendo a uma promessa. Lembro de como ela costumava separar as plantas e enfeitá-las com adornos natalinos, do cheiro da cola feita de tapioca utilizada para colar o papel no velho caixote ornamentado para colocar os santos, da casa cheia, dos benditos entoados, das comidas servidas após a reza: o licor de jenipapo, da torta, da pêta, do ginete, do delicioso bolo de puba com milho que só ela sabia fazer. 

Com o tempo e devido às enfermidades ela já não conseguia ajudar na montagem, mas ficava por perto, observando, agoniada para ver o resultado final e dando seus pitacos: "Ô menina, cadê a boca da lapinha? Vocês não sabem fazer lapinha não. Deixa que eu faço.  Eu só vou colocar a mesa e os santos mesmo", declarava.

Nos anos seguintes ela até ficou mais calma e deixou que tomássemos conta de vez de tal tarefa, e sempre acaba aprovando. E como ela gostava de receber em sua casa as pessoas que iam visitar sua tradicional lapinha ou participar das rezas!




Aprendi com ela a valorizar esse costume e há seis anos faço a lapinha em minha casa. Este ano, utilizei os santos que eram da Vó como forma de homenagear sua memória, sua tradição. Não será mais o mesmo. A montagem da lapinha já não foi a mesma esse ano. Uma coisa que era tão fácil fazer a cada ano, neste foi tão difícil! São lembranças de memórias afetivas vividas intensamente e que jamais irei esquecer tudo o que esses momentos representam pra mim!Fica a saudade e o legado de uma tradição tão bonita!

Um pouco de história - Segundo a Igreja Católica, por volta do ano 1223, São Francisco, para explicar aos camponeses de uma cidade da Itália, teve a ideia de reproduzir o cenário do nascimento de Jesus utilizando a argila para representar as figuras que compõem o presépio natalino: Maria, São José, o menino Jesus, os Três Reis Magos, os pastores, a vaca, o burrinho e outros. A ideia teve grande repercussão e a partir do século XVIII repercutiu na Europa e por todo o mundo.  
  
Por Analítica



 



terça-feira, dezembro 15, 2020

Leituras de Dezembro: Alegrias da maternidade (Buchi Emecheta) e Moisés negro (Alain Mabanckou)


'Alegrias da maternidade' de Buchi Emecheta e 'Moisés negro' de Alain Mabanckou, são as duas últimas obras escolhidas para encerrar as leituras de 2020. Tratam-se de obras indicadas pela Tag Livros.

Alegrias da maternidade (Buchi Emecheta)


"...só agora com esse filho, vou começar a amar de verdade em tudo o que quero ser: mulher e mãe", página 75. Um livro emocionante que ganhei de presente no amigo oculto do grupo da Tag Curadoria Barreiras. Da autora Buchi Emecheta, 'Alegrias da maternidade'  obra publicada pela Tag livros em 2017, relata a história de Nnu Ego, filha de um grande líder africano tradicional Agbadi, que é enviada como esposa ainda aos 11 anos e tem como sonho ser mãe. 

Por uma questão cultural ela se torna a primeira esposa de Nnaife. A história se passa em Lagos, capital da Nigéria, em um cenário marcado por um contexto de guerra, racismo, desemprego, pobreza em que a mulher não tem vez. "Enquanto voltava para o quarto, ocorreu a Nnu Ego que ela era uma prisioneira: aprisionada pelo amor e por seus filhos, aprisionada em seu papel de esposa mais velha", página 194.

Pode-se dizer que a autora numa sacada meio que irônica, utiliza o título dado à obra para mostrar uma trajetória de vida e sofrimento que envolve a personagem principal. Nnu Ego teve que enfrentar a perda de três filhos, com muito esforço e com o pouco recurso que lhe rende o ofício de comerciante, trabalhou para criar os sete filhos sobreviventes para que tivessem um futuro de descente. O filho mais velho Oshia,  apesar de não reconhecer o esforço da mãe, consegue uma bolsa de estudos numa faculdade nos EUA e estuda para ser cientista. Enquanto isso, Nnu Ego teve que suportar o machismo e traições do marido e assumir também o papel de chefe da família provendo o sustento inclusive das outras esposas e seus filhos, quando Nnaife vai para a guerra e depois consequentemente é preso por tentativa de homicídio.

Não deixa de ser uma história de superação. No final, mesmo cansada das dificuldades para sobreviver e sustentar os filhos, Nnu Ego relembra com satisfação que as maiores alegrias de sua vida são os filhos e os desafios que teve que enfrentar para encaminhá-los na vida. "Mas é isso mesmo", respondeu Nnu Ego com os olhos cheios de lágrimas. "Não sei ser outra coisa na vida, só sei ser mãe. O que vou conversar com uma mulher que não tenha filhos? Tirar meus filhos de mim é como me tirar a vida que sempre conheci, a vida com a qual estou acostumada", página 313.

Moisés negro (Alain Mabanckou)


"Tudo começou nessa época em que, adolescente, eu me perguntava a respeito do sobrenome que Papai Moupelo, o padre do orfanato de Loango, tinha me dado: Tokumisa Nzambe po Mose yamoyindo abotami naboka ya Bakoko. Esse longo sobrenome significa, em lingala, 'Demos graças a Deus, o Moisés negro nasceu na terra dos ancestrais', página 09.  

É a última obra indicada pela Tg Livros Curadoria de 2020. De autoria de Alain Mabanckou, um dos autores mais renomados da contemporaneidade, 'Moisés negro' é um romance de ficção congolesa e a trajetória histórica da obra tem início na década de 1970, num orfanato da República do Congo. O enredo gira em torno do personagem central Moisés, que é deixado no orfanato pouco depois de nascer. 

Por Analítica

segunda-feira, novembro 09, 2020

Leituras de novembro: 'Minha vida de rata' e 'O dia em que a poesia derrotou um ditador'


"Uma verdade dolorosa sobre a vida familiar: as emoções mais tenras podem mudar em um instante. Você acha que seus pais amam você, mas será que amam você ou a criança que é deles?", página 21.

'Minha vida de rata', ficção americana de autoria da escritora Joyce Carol Oates, é a obra indicada pela Tag Livros Experiências Literárias no mês de outubro. Nessa leitura pude conhecer a história de Violet Rue, a caçula da família Kerrigan. A narrativa começa em novembro de 1991, quando Violet tem 12 anos e sete meses. "A família é um destino especial. A família em que você nasce e da qual não há escapatória", página 16.

As lembranças da infância e do relacionamento com os pais e os irmãos e da casa onde moravam até o final de sua infância, são frescas na memória de Violet. "Nós morávamos em uma casa de dois andares com estrutura de madeira no número 388 da rua Black Rock, em South Niagara", página 28. 

Estupro de Lisa Denver, uma garota com deficiência mental, ao qual os irmãos Jerome e Lionel Kerrigan estavam envolvidos é algo marcante na narrativa. Testemunhar os depoimentos dos irmãos na cozinha de sua casa, sobre o espancamento do garoto afrodescendente Hadrian Johnson,  (17), estudante de ensino médio e jogador do time de basquete da escola que viria a morrer dias depois, e o depoimento de Violet à enfermeira da escola é o fato norteador para a expulsão de sua própria casa aos 12 anos.  

"Rata vadia. Rata piranha. Dedo-duro. Vamos arrancar a porra da sua cabeça", página 116. "Violet como você pôde? Acabou com as nossas vidas. Seu pai nem consegue falar sobre isso. Não consegue falar sobre você. Enquanto conseguir ficar aqui melhor. Não tem lugar para você em casa", página 117. Primeiro ela mora em um abrigo, depois na casa da tia. "Meu coração está partido. Tolo, sentimental. Não morava com minha família, mas com parentes. Muito melhor do que num abrigo ou num centro de detenção para fugitivos", página 195.

Jerome e Lionel cumpriram pena na Unidade Prisional do Centro do Estado em Marcy, Nova York. "Estou indo atrás de você, rata. Rata, puta. Não vai conseguir se esconder", página 198.

Estudante universitária, trabalha como garçonete meio período e também faxineira. "Se a minha vida de rata acabar um dia, lembrarei daqueles anos da mesma maneira que se olha para um sonho febril, onde o protagonista do sonho está em estado contínuo de perseguição, desespero. Cumprindo minha pena. Sem condicional", página 259. 

Talvez o que Violet não imaginasse é que sendo rejeitada pela própria família por denunciar uma verdade que mudaria a reputação dos Kerrigan, viesse a passar por maus bocados. Longe do seio familiar, ela sofre assédio sexual e sente que sua vida é um grande risco. "Só estou correndo para salvar minha vida", página 314.

Após a morte do irmão mais velho Jerome Jr. na cadeia e do pai, e ter passado grandes dificuldades para se manter, o reencontro com Tyrell Jones, um conhecido do tempo de colegial surge como uma esperança. Com a saída do irmão mais novo após cumprir a pena ela, apesar de achar que ele irá atras dela para se vingar, mesmo assim, ingenuamente, correndo riscos, ela quer retornar a sua cidade natal e reencontrar a família

"No último vislumbre que eu tivera da mamãe ela estava se afastando de mim, no 'abrigo'. Drogada e de andar trôpego mas determinada a escapar de mim. Difícil evitar reconhecer o fato de que a minha mãe havia me abandonado. Transformou-me numa órfã. Por quê?", página 341.

Com todos os perigos que configura o reencontro com a família, já esperando a vingança de Lionel, mais uma vez ela consegue fugir. E mesmo que isso significa viver longe de sua família, ela, com 27 anos, escolhe sua liberdade, e entende que apesar da escolha feita e da perda que isso representa, a partir de agora ela poderá enfim ser feliz.  "Está feliz em entender que uma nuvem idêntica nunca virá de novo, não importa quão bela, quão única. Você chora pela sua perda", página 344.

Encontro das Taggers


Após oito meses realizando discussões literárias por meio da plataforma online, foi realizado na tarde de 25 de novembro um encontro para confraternização das participantes da Tag Curadoria Barreiras. 


O momento foi de descontração, discussão prévia sobre o livro Minha vida de rata, e também contou com a realização do amigo oculto de livros. 



Na oportunidade presenteei as taggers com exemplares de 'Um rio de histórias', o qual divido autoria com as colegas Jackeline Bispo e Luciana Roque.


O dia em que a poesia derrotou um ditador (Antonio Skármeta)



A segunda leitura realizada neste mês, trata-se do livro selecionado para novembro da Tag Livros Experiências Literárias. De autoria de Antonio Skármeta, 'O dia em que a poesia derrotou um ditador', é uma obra de ficção chilena que narra a história da prisão de um professor de filosofia em Santiago no final da década de 1980, quando o país vivia um período de ditadura e as prisões eram bem comuns. 

O então ditador Augusto Pinochet anuncia um plebiscito em que a população deve votar contra ou a favor da continuidade de seu governo. Esse enredo irá envolver a narrativa de Nico, filho do professor Paredes e os desafios da campanha do 'Não', realizada pelo renomado publicitário Adrián Bettini, que com muita ousadia, poesia e alegria irá dar vida a reconstruir uma nova página política. "Há maneiras e maneiras de calar. Há maneiras de dizer calando. Ás vezes a única maneira de dizer é calar o que todos entendemos que deveria ter dito".

A escrita de Antonio Skármeta é bem simples, os capítulos são curtos e eu adorei a obra. A leitura foi bem tranquila e agradável e que apesar das várias facetas de um sistema político opressor, mostrou que com criatividade e carisma de uma ideia bem construída que configurou uma campanha bem feita que pôde alcançar a aprovação da maioria e vencer um plebiscito revertendo a história política de um país. 

"Agora é a vez de vocês. O importante é que, se ganharem o governo, vocês façam algo para acabar com esta coisa tão antipática de estigmatizar as pessoas, entre as que votaram "Sim" e as que votaram "Não". É preciso ser moderno e se sentar em cima das diferenças".


Texto e fotos: Analítica

segunda-feira, outubro 26, 2020

Tudo de bom vai acontecer (Sefi Atta)


"Ela era minha amiga mais antiga, minha melhor amiga. Havíamos nos afastado em certa época, e às vezes a amizade parecia inconstante, como ocorre com quase todas as irmãs, e ela foi mais perto que eu cheguei de ter uma irmã nesse lugar onde as famílias não cansavam de se expandir", página 232. De autoria de Sefi Atta, 'Tudo de bom vai acontecer' é uma obra que segue a linha de temáticas africanas selecionadas pela @Tag Livros Experiências Literárias. O livro conta a história de Enitan, uma garota nigeriana de classe média que mora com os pais e sua amizade com Sheri, que tem a mesma idade. A narrativa é dividida em três períodos (1971, 1985 e 1995) e situa o leitor no tempo. 

A princípio o enredo se passa na cidade de Lagos, marcado pelas memórias de infância de Enitan e o seu primeiro contato com a amiga Sheri Bakare. O pai de Enitan é advogado e a mãe, do lar, que após perder o filho aos três anos, tornou-se oprimida pelo marido, recorre à religião. "Eu já estava começando a ficar entediada de tanto esperar quando duas semanas antes do fim das férias tudo mudou. Era o terceiro domingo de setembro de 1971", página 15. Não se trata de uma amizade aprovada pela mãe de Enitan, mesmo assim a garota faz de tudo para ver a amiga, nem que seja escondido na casa dos Bakare, aos domingos, quando sua mãe está na igreja. "A semana toda fiquei ansiosa para ir a casa de Sheri. As vezes passava pela aleia de hibiscos esperando que ela aparecesse", página 29. 

Sheri é muçulmana, filha de Alhaji Bakare que tem duas esposas. "Nossa casa só tinha um andar e era coberta de alamandas amarelas e buganviles. A dos Bakare era uma casa enorme de um andar, com venezianas de vidro azul claro, tão quadradona que aos meus olhos parecia um castelo", página 30. A amizade entre as duas garotas irá permear ao longo da narrativa. "Sheri havia me guiado até o limite entre o consentimento dos pais e a desaprovação deles", página 49.


"Chegamos a nossa casa e eu andei até o quintal dos fundos, junto à cerca onde cresciam os hibiscos", página 78. O contexto histórico que fundamenta o enredo é atribuído à Guerra Civil de Biafra, que mesmo tendo seu fim em 1970 tem seus reflexos e sempre é citada na narrativa. Enitan escuta atenta as conversas sobre a guerra entre os familiares, embora não estivesse interessada, nesse momento, em reformas políticas do país. Sem perder os laços com a amiga Sheri, Enitan frequenta o colégio Royal College, mas sempre se corresponde com Sheri por cartas. Com personalidade mais reservada que a amiga, Enitan , ela a acha avançada demais, diferente e atrevida. Um dos momentos mais marcantes da narrativa, sem dúvida, é quando Enitan presencia o estupro da amiga.  

Na segunda fase do livro, a jovem Enitan mora em Londres onde cursa direito na universidade. Seus pais se separam e ao terminar a faculdade retorna à Nigéria cheia de esperança. Outro fato que marca esse período é seu reencontro com a velha amiga Sheri. "Sheri ganhou peso ao longo dos anos. (...) Mas perdera quase toda a alegria da infância. Muitas vezes eu me lembrava da época em que ela ria até os hibiscos caírem do seu penteado afro, o que ainda me fazia chorar de rir", página 232.


Na terceira e última parte, Enitan, uma mulher mais madura, trabalha no escritório do pai. No reencontro com Sheri, ela descobre que a amiga agora tem uma casa e uma vida com luxos sustentada por um velho brigadeiro. Enitan incentiva a amiga a abrir um negócio próprio para alcançar sua liberdade financeira. Uma reviravolta marca a narrativa quando Enitan descobre o relacionamento extraconjugal do pai, a quem sempre admirou, e que ela tem um irmão. Ela sai da casa do pai e vai morar com a amiga Sheri. Enitan nessa fase se mostra mais interessada em se envolver com as causas políticas de seu país e conhece a jornalista Grace Ameh que a convida para lutar contra o atual regime militar. "Dizem que a democracia está à venda. Além do mais seus líderes são coagidos. Não podem nos ajudar se isso prejudicar seus eleitores. Teremos sempre que procurar nossas próprias soluções. Eu tenho fé na África um continente que pode produzir um Mandela. Tenho fé", página 353.

Quando Enitan conhece o marido Niyi e engravida, percebe que seu casamento não é o que ela esperava e vai de encontro a tudo o que ela protestou a vida toda, e resolve separar-se dele. Por meio da jornalista Grace, Enitan tem notícias do pai. "Dois meses depois tive notícias de meu pai. Ele esteve preso durante dez meses. Nosso país passava por um tumulto internacional por causa do enforcamento de nove ativistas ambientais do Delta Níger, incluindo o escritor Ken Saro-Wiwa. Nosso governo manteve-se irredutível", página 364. Enitan se separa de Niyi e volta a morar na casa que era de sua mãe. Quando o pai é solto e ela está a caminho de encontrá-lo, sente-se realmente liberta, feliz e com a expectativa de que 'Tudo de bom vai acontecer' a partir daquele momento. "Nada poderia tirar minha alegria. O sol me enviava sua benção. Meu suor me batizava", página 367.

O livro apresenta por meio da vivência da personagem de Enitan e de sua amiga Sheri, uma visão abrangente de como é crescer mulher na Nigéria. Narrada em primeira pessoa pela protagonista Enitan, que apesar  de pertencer a uma família de classe média e ter privilégios com relação à amiga Sheri, sua trajetória de 25 anos, marcada pelo machismo e formas de violência. Não deixa de ser uma história de superação, por mostrar que apesar do preconceito vivido por essas mulheres, elas mantém ideais de independência, mudança e conseguem realizar sonhos, frequentar uma faculdade e ir em busca de sua própria liberdade, como aconteceu com Enitan e Sheri.  

* Uma referência que a narrativa atribui em algumas passagens são citações voltadas às flores 'hibiscos' e 'alamandas', sempre presentes nas memórias de Enitan, seja na frente das casas ou para enfeitar os cabelos de sua amiga Sheri. Por isso utilizei as duas flores, que gosto muito e que tenho em casa para compor as fotos produzidas para essa postagem.

Texto e foto: Analítica

terça-feira, outubro 20, 2020

A culpa é das estrelas (John Green)

 


"Alguns infinitos são maiores que outros. Há dias, muitos deles, em que fico zangada com o tamanho do meu conjunto ilimitado. Queria mais números do que provavelmente vou ter, e, por Deus queria mais números para o Augustus Waters do que os que ele teve. Mas Gus, meu amor, você não imagina o tamanho da minha gratidão pelo nosso pequeno infinito. Eu não trocaria por nada esse mundo. Você me deu uma eternidade dentro dos nossos dias numerados e sou muito grata por isso", página 182. 

"O verdadeiro amor nasce em tempos difíceis". 'A culpa é das estrelas' de John Green, é um romance fictício que destaca a história de Hazel Grace (16) e Augustus Waters (17), o garoto por quem ela conhece no Grupo de Apoio a Crianças com Câncer. Dependente de um cilindro de oxigênio, a qual o chama carinhosamente de Felipe, Hazel tem tireoide com metástase nos pulmões e Gus osteossarcoma. Diagnosticados com câncer terminal, os dois jovens vão aproveitar o tempo que têm para viver intensamente uma história de amor. "Sem dor não poderíamos reconhecer o prazer".

Um dos pontos que o enredo destaca e que me atraiu muito na narrativa é o foco dado à leitura. Da discussão literária dos protagonistas sobre um livro 'Uma aflição imperial', nasce a ideia dos dois visitarem o autor dessa obra, Peter Van Houten, em Amsterdã, para saberem acerca de uma possível continuação da obra e que fim tiveram os personagens. 

Na viagem dos dois a Amsterdã, acompanhados da mãe de Hazel, o casal tem uma grande decepção no encontro com o tal escritor. Mas a viagem agrega outros momentos que são inesquecíveis para a relação de Hazel e Gus: o jantar regado a champanhe no restaurante Oranjee, a visita a casa/museu de Anne Frank onde acontece o primeiro beijo dos dois assistido e aplaudido por outros visitantes e a primeira transa deles no retorno ao hotel. "Estou apaixonado por você e sei que o amor é apenas um grito no vácuo, e que  o esquecimento é inevitável, e que estamos todos condenados ao fim, e que haverá um dia em que tudo o que fizemos voltará ao pó", página 109.

De volta da viagem, o romance de Hazel e Gus terá seus últimos capítulos escritos e mesmo com pouco tempo, os dois vão aproveitar cada instante desse amor para torná-lo inesquecível. "As pessoas vão dizer que é triste o fato de ela deixar uma cicatriz menor, que menos pessoas se lembrem dela, que ela tenha sido muito amada mas não por muita gente. Mas isso não é triste, Van Houten. É triunfante. É heróico", páginas 218.

Já conhecia a história de Hazel e Gus por meio do filme, mas somente agora tive contato com a obra literária - muito embora sempre costumo fazer o contrário - e adquirir o livro. A obra se configura em uma narrativa recheada de detalhes em que John Green utiliza uma escrita bem simples para falar de um tema que se tornou comum, mas tratado de maneira alegre e tão emocionante, baseada na trajetória de vida de dois jovens e do pouco tempo que eles têm juntos para viver um grande amor. "Não dá para escolher se você vai ou não vai se ferir neste mundo, mas é possível escolher quem vai feri-lo. Eu aceito as minhas escolhas. Espero que a Hazel aceite as dela", página 219. 

  
Texto e foto: Analítica

terça-feira, setembro 29, 2020

A síndrome de Aquiles - Como lidar com as crises de imagem (Mário Rosa)

 


"Várias organizações e líderes costumam manter uma fé cega em si mesmos, menosprezando muitas vezes essa percepção externa da imagem. Mais uma vez vale lembrar aquele velho ditado da comunicação: a comunicação não é o que você diz, mas o que os outros entendem. Ou, de outra forma: a sua imagem não é a que você vê, mas a que os outros vêem. Ou ainda: os seus valores não são só os que você cultiva, mas os que os outros associam a você", página 90.

Fugindo um pouco das leituras convencionais mensais, resolvi optar por esta obra para a segunda leitura do mês de setembro. Na verdade uma releitura. O livro faz parte do meu acervo desde a época da faculdade e estava empoeirado na minha estante faz um bom tempo. 

Para entender um pouco sobre a obra é preciso recorrer à história, mais precisamente a narrativa da mitologia grega. Como o autor se refere nos primeiros capítulos, para a mitologia grega, Aquiles era 'sinônimo de invencibilidade'. Ainda criança, ele foi mergulhado pela mãe, a semideusa Tétis no Rio Estige e esse mergulho o tornaria um ser invulnerável. Mas como a mãe tinha que segurar a criança por alguma parte do corpo, segurou-o pelo calcanhar, mergulhando-o de cabeça para baixo, tornando esse o seu único ponto fraco: o calcanhar.

"Derrotava os inimigos como se eles não existissem, avançava e ocupava espaços como nunca se vira. (...) Um dia em que a guerra estava bastante acirrada em Tróia, Aquiles seguia para os portões da cidade, quando parou para zombar de dois pobres e infelizes troianos que estavam em seu caminho.  Aquiles gabava-se de seus grandes feitos, das cidades que havia aniquilado, dos tesouros que acumulava e do quão temível se tornara. Nesse momento uma lança reluzente foi atirada em sua direção, acertando-lhe o único ponto vulnerável de seu corpo: como se sabe, o calcanhar. A morte foi rápida. O destruidor de tantas cidades caiu estendido no chão. Não se sabe ao certo quem foi o autor do assassinato", página 37.

O autor faz comparativos do personagem da mitologia grega Aquiles com as crises de imagem enfrentadas por empresas e personalidades públicas revelando apontamentos a serem seguidos em gerenciamento de crises desenvolvidos ou não por equipes de Assessoria de imprensa. Para entender o que é uma crise de imagem, o autor define parafraseando Ian Mitroff, um dos precursores da administração de crises do mundo, o qual define que a crise de imagem difere das demais, 'quando ela tem origem humana, o que torna o caso potencialmente muito mais chamativo e perigoso', página 21. 

Para o estudioso, "em contraste com os desastres naturais, sobre os quais frequentemente temos pouco controle, falhas humanas provocam crise em função de ações ou de inações impróprias" e ainda: "Em princípio, falhas humanas podem ser previstas e, exatamente por esse motivo, o público se sente escandalizado quando elas ocorrem", página 21.

Mario Rosa também destaca em um certo capítulo abordagens acerca de 'Quando a crise é você', para aproximar o leitor do assunto em questão, declarando que é preciso que "você está sendo visto por pessoas estranhas, que não o conhecem como realmente é" e que "nos contatos com a mídia, na definição de sua estratégia, lembre-se sempre de que você será visto como o símbolo de algo". 

O autor traz modelos de Gerenciamento e de Administração de Crises e aponta também pilares que sustentam a imagem, a exemplo de: valores, novos valores e significados, e chama a atenção para que seja observado se a imagem é consistente, coerente, estável, e se tem capacidade para sobreviver e de organização. 

A narrativa de Mário Rosa apresenta nessa obra é sempre fundamentada por exemplos de empresas ou personalidades públicas que passaram por crises de imagens e na maioria das vezes, o que fizeram para contornar a situação, saindo vitoriosas ou não. Na época, adquiri o livro para estudos da disciplina de Assessoria de Comunicação, área em que atuo, e hoje caracterizo como uma leitura bem oportuna para o momento, além de rever alguns conceitos e apontamentos do autor que podem ser agregados ao dia a dia.

Por Analítica

terça-feira, setembro 22, 2020

O menino do pijama listrado (John Boyne e Oliver Jeffers)



"Há centenas de crianças aqui", disse Bruno, sem pensar realmente nas palavras antes de dizê-las. "Só que elas ficam do outro lao da cerca". (...) "Eu as vejo da janela do meu quarto", disse afinal. "estão muito longe, é claro, mas parecem centenas. Todas vestindo os mesmos pijamas listrados", página 274.

Infância, inocência, amizade, curiosidade, cumplicidade, descobertas. Essas são apenas algumas características que marcam a história de Bruno e Shmuel.  Dois meninos da mesma idade separados por realidades diferentes. "Quero saber daquelas pessoas que eu vejo da minha janela. As que moram nas cabanas, lá longe. Estão todas com as mesmas roupas". "Ah, aquelas pessoas", disse o pai, acenando com a cabeça e sorrindo levemente. "Aquelas pessoas...bem, na verdade elas não são pessoas, Bruno", página 90.

Agora depois de ter concluído a leitura, me questiono como pude ter deixado esse livro há tanto tempo na minha lista de espera. Algum tempo já tinha ouvido falar da obra e resolvi adquirir para meu acervo pessoal. "Quando eu era criança", disse Bruno para si mesmo, "costumava gostar de explorar. E isso ainda em Berlim, onde eu conhecia todos os lugares e sabia encontrar o que quisesse, mesmo vendado. Nunca explorei este lugar, talvez seja hora de começar", página 149.

Uma narrativa comovente, emocionante e mostra o quanto podemos aprender a partir da ingenuidade de duas crianças. "O garoto era menor do que Bruno e estava sentado no chão com uma expressão de desamparo. Ele vestia o mesmo pijama listrado que todas as outras pessoas daquele lado da cerca, e um boné listrado de pano. Não tinha sapatos ou meias, e os pés estavam um pouco sujos. Usava uma braçadeira com uma estrela desenhada. Quando Bruno se aproximou do menino pela primeira vez, ele estava sentado no chão de pernas cruzadas, olhando para a poeira debaixo de si. (...) Bruno teve a certeza de jamais ter visto um menino tão triste e tão magro em toda a sua vida, mas decidiu que seria melhor conversar com ele", páginas 162 e 163.

A partir do momento em que Bruno, o garoto alemão muda-se com sua família da casa em Berlim para uma casa isolada no campo, vê sua rotina mudar por conta da promoção de trabalho de seu pai. "Na verdade, para onde quer que ele olhasse, só via dois tipos de gente: se não eram os soldados felizes, sorridentes e gritalhões nos seus uniformes, então eram as pessoas infelizes e choronas de pijama listrado, a maioria das quais parecia estar olhando para o nada, como se estivessem de fato adormecidas", página 300.

Sem a presença dos antigos amigos, agora ele precisa de alguém para brincar. Pela janela do quarto da nova casa, ele vê ao longe algo que parece ser uma fazenda e pessoas que vestem pijama. Sua curiosidade o instiga a aproximar de forma escondida desse local. É quando conhece, do outro lado da cerca o garoto judeu, Shmuel. O mais incrível é a primeira percepção que Bruno tem em achar que se estivesse do outro lado da cerca, como Shmuel, ele teria mais amigos para brincar. 

"É tão injusto", disse Bruno. "Não entendo por que tenho que ficar encalhado do lado de cá da cerca, onde não há ninguém pra conversar nem para brincar, e você fica com dúzias de amigos e provavelmente brinca durante horas e horas todo o dia. Terei que conversar com meu pai a respeito disso", páginas 168 e 169.  

Nem mesmo a cerca é empecilho para uma grande e verdadeira amizade. São nesses encontros que eles brincam, riem, conversam e fazem planos de um dia estarem juntos em um mesmo lado. "Ele olhou para baixo e fez algo bastante incomum para a sua personalidade: tomou a pequena mão de Shmuel e apertou-a com força entre as suas. 'Você é meu melhor amigo, Shmuel', disse ele. 'Meu melhor amigo para a vida toda", página 310.

Em um desses planos que tentam realizar, ingenuamente motivados pela vontade de se ajudarem e de finalmente estarem próximos um do outro, a história de amizade entre os dois culmina em um final trágico e emocionante. "O soldado deixou tudo lá, intocado e foi buscar o comandante, que examinou a área e olhou para a esquerda e para a direita assim como Bruno fizera, sem ser capaz de compreender o que acontecera com o filho. Era como se ele tivesse simplesmente desaparecido da face da terra e largado as roupas para trás", página 311.

Embora sem final feliz, a narrativa consegue prender o leitor aos detalhes do enredo e o livro é uma ótima sugestão de leitura. Ao longo da história por vezes consegui imaginar o ambiente do campo de concentração, a voz dos meninos e me comover com tamanha inocência e ingenuidade dos dois garotos em meio a tanta maldade e tudo o mais que se possa imaginar de cruel numa história que se passa na época marcada pelos abusos do Nazismo.

Por Analítica 


quinta-feira, agosto 27, 2020

Afima, Pereira (Antonio Tabucchi)


"A filosofia parece só tratar da verdade, mas talvez só diga fantasias, e a literatura parece só tratar de fantasias, mas talvez diga a verdade. (...) dê espaço ao seu novo eu hegemônico, deixe-o ser, precisa nascer, precisa se afirmar". Entre efemérides e necrológios que escreve para a editoria Cultural do Jornal Lisboa, o jornalista doutor Pereira, afirma tomar uma limonada enquanto delicia uma boa omelete no Café Orquídea que fica próximo de sua sala de redação situada à Rua Rodrigo Fonseca, onde trabalha sozinho, longe da redação principal do jornal.

Doutor Pereira é um homem solitário, não tem família, não teve filhos e costuma conversar com o retrato da esposa falecida. Quase não tem amigos, a não ser o doutor Cardoso, Manuel, o garçom do Café Orquídea, Monteiro Rossi seu estagiário e a namorada Marta, uma senhora que faz a faxina de seu apartamento ou Celeste a zeladora do edifício onde mora sozinho. "...o senhor vive projetado no passado, o senhor está aqui como se estivesse em Coimbra trinta anos e como se sua mulher ainda fosse viva, se o senhor continuar assim, irá se tornar uma espécie de fetichista das lembranças, talvez comece a falar com o retrato de sua mulher. Pereira secou a boca com o guardanapo, baixou a voz e disse: eu já faço isso, doutor Cardoso. Eu vi o retrato de sua mulher em seu quarto, na clínica, disse, e pensei: este homem fala mentalmente com o retrato de sua mulher, ainda não elaborou o luto, foi isso mesmo que pensei, doutor Pereira", página 119.

A história se passa em Portugal de 1930. Desinteressado por política, doutor Pereira vive com as lembranças do passado. É católico e seu maior passa tempo é escrever os necrológios e efemérides para o jornal que trabalha ou fazer traduções do romance de autores do século 19.  Monteiro Rossi é o estagiário contratado por Pereira e encarregado de escrever os necrológios antecipados de escritores famosos para a sessão de obituário do jornal. Mas o jornalista não fica satisfeito com os textos do estagiário, que se envolve com questões políticas, some por um tempo e um final surpreendente lhe é reservado no seu retorno e abrigo dado por Pereira em seu apartamento. 

É o diretor do jornal, doutor Cardoso que chama a atenção de Pereira para que ele não escreva sobre autores franceses, mas sobre autores portugueses por se tratar de um jornal português. Cardoso também o aconselha a se desapegar do passado e viver mais o presente. "...não está escrito em lugar nenhum que este país seja para o senhor, e depois aqui há lembranças demais, procure jogar no bueiro seu superego e dê espaço a seu novo eu hegemônico, talvez possamos nos ver em outras ocasiões, e o senhor será um homem diferente", página 120.

É o meu primeiro contato com o autor Antonio Tabucchi. O designer gráfico do livro é interessante, a capa traz alguns elementos em alto relevo em referência aos azulejos portugueses e imagens de elementos presentes na rotina do personagem central, Pereira. O livro também apresenta algumas receitas culinárias que aparecem durante a histórias e que são preferências do personagem Pereira. 

No enredo, embora de ficção, o autor também não deixa de pincelar flashes de fatos históricos pertinentes para entender tópicos relevantes e que valorizam a narrativa. A exemplo da referência a dois momentos: o Salazarismo de Portugal (período ditatorial em Portugal, de 1933 a 1974, conhecido como Estado Novo. O termo “salazarismo” se refere a António de Oliveira Salazar, chefe de governo de Portugal nesse período que teve fim com a Revolução dos Cravos e originou a reconstrução da democracia portuguesa), e do Fascismo da Itália (movimento político instituído por Benito Mussolini em 1922. Um governo autocrático, centrado na figura do ditador Mussolini que defendia a superioridade da nação, estado e raça).

A leitura foi bem tranquila, fluiu rapidamente, os capítulos são curtos, que é algo que me atrai muito e a escrita do autor é simples, somente em alguns poucos momentos se revela técnica. Outra característica marcante da narrativa é que o texto, além de se apresentar em forma de um depoimento, predomina também a variação entre o sujeito (Pereira) e o verbo (afirma), fazendo alusão ao título do livro. Por vários momentos o leitor se depara com essa variação nos períodos: Afirma Pereira, ou Pereira afirma ou somente afirma, em que o autor utiliza dessa máxima comum à linguagem jornalistica.

Gostei desse livro do mês de agosto da @taglivros, uma experiência literária agradável que estou vivendo este ano e que até o momento tem sido bastante positiva, que tem me proporcionado a possibilidade de conhecer outros autores, contribuído para ampliar meu conhecimento de mundo, meu vocabulário, minha escrita e também para diversificar minhas leituras. 

Texto e foto: Analítica


A Travessia (William P. Young)

 


"Tony tinha a sensação de estar sendo puxado para cima, como se fosse atraído de forma irresistível em direção a um campo gravitacional suave, porém insistente. A sensação era de ser acolhido no colo materno, e ele não ofereceu resistência. Tinha uma vaga lembrança de ter entrado em uma luta que o deixara exausto, mas agora o conflito parecia desaparecer", página 24. 

A Travessia, William P. Young traz a história de Antony Spencer, conhecido por Tony, um milionário de quarenta e poucos anos, ateu e muito egoísta, que após sofrer um acidente vascular cerebral (AVC), fica um período hospitalizado em coma, longe da família e de amigos. "Com essas lembranças, ele começou  a subir mais devagar, até ficar parado na escuridão absoluta, suspenso em um momento de dúvida. Se Gabriel tivesse sobrevivido, será que aquele garotinho tão precioso teria salvado a existência patética de Tony? Três outros rostos lampejaram em sua mente, três pessoas com as quais havia fracassado de forma grave e terrível: Loree, seu amor da adolescência e duas vezes sua esposa; Angela sua filha, que provavelmente o odiava tanto quanto ele odiava a si mesmo; e Jake...oh, Jake, sinto muito, meu amigo", página 25.

Tony tem a oportunidade de encontrar Jesus e o Espírito Santo e de viver uma segunda chance para reavaliar suas atitudes e conseguir mudança."... o que é velho precisa ser derrubado para que o novo possa ser seguido. Para haver uma ressurreição, é preciso haver uma crucificação, mas Deus não desperdiça nada, nem mesmo as coisas más que nossa imaginação foi capaz de criar durante a existência. Em cada edifício demolido ainda resta muito do que um dia foi verdadeiro, correto e bom, e isso faz parte da criação do novo", página 112.

Nessa tentativa de mudança para melhor ele encontra pessoas que vão lhe mostrar um jeito simples de ver a vida e que podem lhe ajudar a aproveitar a chance para fazer algo de bom a qual lhe foi proposto em uma segunda oportunidade: curar alguém. Apesar de ser uma obra de ficção o enredo mostra a volta por cima do protagonista, e do seu desejo de mudança. outrora ateu, agora ele passa a buscar Deus para lhe ajudar a atravessar o novo momento e conduzir sua alma para um novo caminho. "O que importava naquele momento para Tony era simplesmente estar ali, dentro daquele relacionamento com os dois. Êxtase e tranquilidade permeavam sua alma, uma esperança serena e uma expectativa sem rédeas envolvidas em um manto de paz", página 194.

Embora A Cabana traga um enredo mais interessante e também por ser a obra que assinala o meu primeiro contato com o autor, A Travessia é também uma boa sugestão de leitura, e permite uma avaliação da proximidade e do relacionamento com Deus, além de uma reflexão acerca do nosso papel enquanto seres humanos, sobre erros e acertos e do que podemos fazer pelo outro.

Texto e foto: Analítica


A Cabana (William P. Young)

 


"A grande tristeza havia baixado como uma nuvem, e em graus diferentes cobria  todos os que tinham conhecido Missy", página 58. A Cabana é um convite à reflexão sobre o papel que estamos desempenhando neste mundo. É o tipo de livro que você lê e se surpreende por encontrar direcionamentos que estão bem mais próximos do que imaginamos. Uma proposta de mudança de vida e respostas à indagações tão presentes no nosso cotidiano. Não é por acaso que a obra se tornou um fenômeno de público com mais de dois milhões de exemplares vendidos.

O enredo traz a história de Mackenzie Allen Phillips, um homem que se tornou amargurado pela perda de sua filha caçula Missy. Ela tinha seis anos  quando foi sequestrada e brutalmente assassinada durante um acampamento de fim de semana com a família. "Como em todas as outras situações, o matador não deixara nenhuma pista que pudesse ser seguida, só o broche. Era como se estivesse lidando com um fantasma", página 57.  

Mack sempre se refere ao episódio como a 'Grande tristeza'. Após quatro anos,  ele tem a oportunidade de voltar à cabana, onde tudo aconteceu, para viver um grande momento: um encontro com Deus. "Mackenzie, já faz um tempo. Senti sua falta. Estarei na cabana no fim de semana que vem, se você quiser me encontrar, Papai", página 19. Em conversa com Deus, Jesus e o Espírito Santo, Mack tem a chance de aprender grandes lições na tentativa de crescimento espiritual. "A saída é voltar-se para mim (...)  Os homens por sua vez, acham muito difícil dar as costas para as obras de suas mãos, para sua busca de poder, segurança e importância. Também acham difícil retornar para mim", página 134.

Em certos momentos, o autor também faz alusão à narrativa bíblica para fundamentar alguns trechos do enredo, a exemplo da passagem mencionada em Mateus 14, em que Jesus caminha sobre a água com o discípulo Pedro. "Seus sapatos ficaram molhados no mesmo instante, mas a água não subiu nem mesmo até os tornozelos. O lago ainda se movia ao seu redor e ele quase perdeu o equilíbrio por causa disso. Era estranho. Olhando para baixo, era como que seus pés estavam sobre algo sólido, mas invisível. Virou-se e viu Jesus ao seu lado segurando os sapatos e as meias numa das mãos e sorrindo", página 130.

O crescimento de Mack se dá no decorrer das experiências que lhe são permitidas, a exemplo da oportunidade que ele tem de ser juiz, da aula de voo e de fazer escolhas. "A medida que você cresce no relacionamento comigo, o que fizer simplesmente refletirá quem você realmente é", página 135. Aos poucos Mack vai também se libertando do sentimento de culpa que ainda sente em torno da morte da filha. "Só você em todo o universo acredita que tem alguma culpa (...) talvez seja hora de abandonar essa mentira. E mesmo que fosse culpado, o amor dela é muito mais forte do que a sua falha jamais poderia ser", página 155. O ponto alto da narrativa é quando é proposto ao personagem o perdão ao assassino da filha e o compromisso com o amor a Deus e ao próximo. "Lembre-se, as pessoas que me conhecem são aquelas que estão livres para viver e amar sem qualquer compromisso", página 168.

Distribuídos em 18 capítulos, é uma leitura envolvente contada de forma prazerosa. A primeira vez que li foi há 10 anos, mas desta vez a leitura foi mais intensa, acho que por conta de que eu precisava ouvir mais agora, as mensagens/lições que o livro traz. Mas em suma, o livro traz uma linguagem simples, envolvente e bem criativa para falar de Deus e seus ensinamentos. De certa forma, é também um convite para avaliarmos o nosso relacionamento e proximidade com Deus e para nos questionarmos acerca da nossa missão de vida.   

Texto e foto: Analítica

Dica de Leitura: Amar, verbo intransitivo (Mário de Andrade)

  “As conveniências muitas vezes prolongam a infelicidade”. Em ‘Amar, verbo intransitivo’, embarcamos com Mário de Andrade, em uma obra cara...