sexta-feira, maio 29, 2020

A hora da estrela (Clarice Lispector)


"Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior e inexplicável". Como segunda leitura para concluir este mês de maio, escolhi a obra 'A hora da estrela', de Clarice Lispector. Este livro marca meu primeiro contato com a obra da autora, realizado em fevereiro de 2017. E agora, optei por fazer esta releitura para deixar registrada aqui no Analítica.

É comum na narrativa da autora algumas intervenções, como exemplo, pode-se ver nesse trecho. "Nesses últimos três dias, sozinho, sem personagens, despersonalizo-me e tiro-me de mim como quem tira uma roupa. Despersonalizo-me a ponto de adormecer (...) E agora emerjo e sinto falta de Macabéa. Continuemos". E ainda, a autora faz indagações ao leitor como para despertar sua reflexão de mundo: "Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido. Só não inicio pelo fim que justificaria o começo - como a morte parece dizer sobre a vida - porque preciso registrar os fatos antecedentes".

O enredo gira em torno da personagem central Macabéa, que recebeu esse nome em homenagem a Nossa Senhora da Boa Morte. Sem pai e mãe desde cedo, a jovem alagoana foi criada por uma tia moralista no Rio. Após a morte da tia ela passa a dividir um quarto com algumas moças e  trabalha como datilógrafa. Ouvir a Rádio Relógio é um de seus passa-tempo e seu sonho é um dia se tornar uma estrela de televisão. O namorado Olímpico, que trabalha como metalúrgico, a troca por sua amiga, Glória. 

Tão simples, tão ingênua, a jovem Macabéa vive sem cuidados uma vida miserável em que comia pedaços de papel para saciar a fome. Ao descobrir que tem tuberculose e até mesmo sem se dar conta da gravidade da doença, é aconselhada pela amiga Glória a ir em uma cartomante para saber a sua sorte. A madame Carlota prevê um futuro emocionante para a garota, no qual ela iria se casar com um gringo muito rico. O enredo termina com uma tragédia em que a jovem é atropelada por um carro de luxo, logo em frente a calçada da cartomante, e ali mesmo morre sem receber nenhum socorro de quem assiste.

Por quê sempre escolho ler Clarice? Ora, porque é sempre tão leve, uma leitura agradável para esse momento de tantas incertezas, de dúvidas em que o mundo está tenso por uma pandemia. Faz parte da escrita da autora a tentativa de desvendar a essência humana e o modo simples de ver as coisas, as pessoas e o mundo. Nos faz também buscar, dentro de nós mesmos uma reflexão acerca do que estamos fazendo de bom nesse mundo e para os outros.

"(...) Que ninguém se engane, só conheço a simplicidade através de muito trabalho".  

Texto: Analítica

terça-feira, maio 12, 2020

Ponto Cardeal (Léonor de Récondor)


"Não sou mais o da minha carteira de identidade, e Lauren ainda não existe oficialmente. Se eu não me defino, posso dizer, de fato, quem eu sou? Meu corpo se transforma tão devagar. Devagar demais para poder dar uma resposta objetiva a Quem sou eu?", página 168. 

Um personagem em busca da liberdade de viver outra identidade. O romance francês de Léonor de Récondor, publicado em 2017 relata a história de Laurent Duthillac. Casado com Solange há cerca de 20 anos, eles tem dois filhos, Thomas de 16 anos e Claire de 13. Longe da família, Laurent se traveste de Mathilda para ir a boate Zanzibar com as amigas. 

"Faz 20 anos. Nada de sexual no início, mas uma amizade evidente", página 19. Laurent trabalha em uma empresa e é fascinado pela forma como as mulheres se vestem e se maquiam. "Ele olha o salto alto de Estelle e sua maquiagem bem feita". 

A leitura é tranquila e o livro traz capítulos pequenos, que é algo que gosto muito. A escrita da autora é clara. Logo no primeiro capítulo quando a escritora vai desmontando o personagem de Matilda, dentro do carro no estacionamento da boate, e vai reconstruindo Laurent, criou certa expectativa acerca de um tema tão debatido nos dias atuais que é a transexualidade. 

Só que no decorrer da narrativa, e a forma rasa abordada em cada capítulo deixa a desejar para uma temática tão abrangente. Os conflitos apontados pela autora, quais sejam a relação de Laurent com a esposa, os filhos, no ambiente de trabalho e na vizinhança são contornados de maneira fácil e rápida.   

Laurent mantém uma boa relação com os filhos, inclusive faz questão de levar o filho Thomas ao futebol, assim como seu pai fazia com ele, apesar de não gostar do esporte. "Na família, o futebol se impunha como a apoteose da masculinidade, e a brutalidade dos sentimentos que aquele esporte implicava, o magoava profundamente", páginas 25 e 26. 

Para a esposa Solange, Laurent representa um porto seguro, pois ela não tem amigos e além do trabalho ela cuida da família e da casa. Para ela foi um choque muito  grande descobrir que o marido é uma mulher trans. Outro momento marcante é a revelação aos filhos, feita durante o jantar pelo próprio Laurent. O filho Thomas se rebela e Claire fica mais incrédula que furiosa. 

Durante a terapia com o psiquiatra, ele é encaminhado ao endocrinologista que lhe orienta a tomar hormônios femininos. Quando começa a perceber os reflexos das mudanças em seu corpo ele resolve mudar o guarda roupa e vai trabalhar pela primeira vez vestido como uma mulher. O romance não aborda a relação de Laurent com outros homens ou mulheres, mas mostra que a sua satisfação é assumir seu lado feminino, se vestir, se maquiar, usar salto alto,de peruca, de observar como as mulheres se vestem e se arrumam. Essa mudança radical surpreende a todos em seu ambiente de trabalho, na escola dos filhos e na vizinhança. 

No desenrolar do enredo, Solange passa a pagar alguém para ser seu amante. Não se tem um retorno de que Laurent conseguiu reatar com o filho Thomas, que foi para um internato por opção própria e Claire continua apoiando o pai. Laurent resolve enterrar para sempre Mathilda e fazer a cirurgia para mudar de sexo enquanto aguarda oficialmente nova identidade, onde agora passa a se chamar Lauren. 

"E o hoje é apenas uma espera, uma passagem. Tornar-se mulher não desloca o objeto de meu desejo. Também não o substitui (...) todos os dias eu tomo meus hormônios, já liguei para o consultório do cirurgião na Bélgica", página 167. "(...) Lauren os vê tão claramente, nas ondas, no jardim, sob o sol, na chuva, cada dia único e mutante, cada dia que passa com Mathilda, Cynthia, com todas as outras do Zanzi. Lauren em plena luz", página 172. 



Texto e foto: Analítica
  

Dica de Leitura: Amar, verbo intransitivo (Mário de Andrade)

  “As conveniências muitas vezes prolongam a infelicidade”. Em ‘Amar, verbo intransitivo’, embarcamos com Mário de Andrade, em uma obra cara...