terça-feira, maio 12, 2020

Ponto Cardeal (Léonor de Récondor)


"Não sou mais o da minha carteira de identidade, e Lauren ainda não existe oficialmente. Se eu não me defino, posso dizer, de fato, quem eu sou? Meu corpo se transforma tão devagar. Devagar demais para poder dar uma resposta objetiva a Quem sou eu?", página 168. 

Um personagem em busca da liberdade de viver outra identidade. O romance francês de Léonor de Récondor, publicado em 2017 relata a história de Laurent Duthillac. Casado com Solange há cerca de 20 anos, eles tem dois filhos, Thomas de 16 anos e Claire de 13. Longe da família, Laurent se traveste de Mathilda para ir a boate Zanzibar com as amigas. 

"Faz 20 anos. Nada de sexual no início, mas uma amizade evidente", página 19. Laurent trabalha em uma empresa e é fascinado pela forma como as mulheres se vestem e se maquiam. "Ele olha o salto alto de Estelle e sua maquiagem bem feita". 

A leitura é tranquila e o livro traz capítulos pequenos, que é algo que gosto muito. A escrita da autora é clara. Logo no primeiro capítulo quando a escritora vai desmontando o personagem de Matilda, dentro do carro no estacionamento da boate, e vai reconstruindo Laurent, criou certa expectativa acerca de um tema tão debatido nos dias atuais que é a transexualidade. 

Só que no decorrer da narrativa, e a forma rasa abordada em cada capítulo deixa a desejar para uma temática tão abrangente. Os conflitos apontados pela autora, quais sejam a relação de Laurent com a esposa, os filhos, no ambiente de trabalho e na vizinhança são contornados de maneira fácil e rápida.   

Laurent mantém uma boa relação com os filhos, inclusive faz questão de levar o filho Thomas ao futebol, assim como seu pai fazia com ele, apesar de não gostar do esporte. "Na família, o futebol se impunha como a apoteose da masculinidade, e a brutalidade dos sentimentos que aquele esporte implicava, o magoava profundamente", páginas 25 e 26. 

Para a esposa Solange, Laurent representa um porto seguro, pois ela não tem amigos e além do trabalho ela cuida da família e da casa. Para ela foi um choque muito  grande descobrir que o marido é uma mulher trans. Outro momento marcante é a revelação aos filhos, feita durante o jantar pelo próprio Laurent. O filho Thomas se rebela e Claire fica mais incrédula que furiosa. 

Durante a terapia com o psiquiatra, ele é encaminhado ao endocrinologista que lhe orienta a tomar hormônios femininos. Quando começa a perceber os reflexos das mudanças em seu corpo ele resolve mudar o guarda roupa e vai trabalhar pela primeira vez vestido como uma mulher. O romance não aborda a relação de Laurent com outros homens ou mulheres, mas mostra que a sua satisfação é assumir seu lado feminino, se vestir, se maquiar, usar salto alto,de peruca, de observar como as mulheres se vestem e se arrumam. Essa mudança radical surpreende a todos em seu ambiente de trabalho, na escola dos filhos e na vizinhança. 

No desenrolar do enredo, Solange passa a pagar alguém para ser seu amante. Não se tem um retorno de que Laurent conseguiu reatar com o filho Thomas, que foi para um internato por opção própria e Claire continua apoiando o pai. Laurent resolve enterrar para sempre Mathilda e fazer a cirurgia para mudar de sexo enquanto aguarda oficialmente nova identidade, onde agora passa a se chamar Lauren. 

"E o hoje é apenas uma espera, uma passagem. Tornar-se mulher não desloca o objeto de meu desejo. Também não o substitui (...) todos os dias eu tomo meus hormônios, já liguei para o consultório do cirurgião na Bélgica", página 167. "(...) Lauren os vê tão claramente, nas ondas, no jardim, sob o sol, na chuva, cada dia único e mutante, cada dia que passa com Mathilda, Cynthia, com todas as outras do Zanzi. Lauren em plena luz", página 172. 



Texto e foto: Analítica
  

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