sexta-feira, abril 24, 2020

Minhas memórias da Vó Si






Avó é como segunda mãe. São muitas as lembranças que tenho da Vó Si. A única avó que conheci. Na sua humildade, Sizaltina Dourado de Santana, ou Dona Si, como era carinhosamente conhecida, foi exemplo de mulher guerreira, alegre, acolhedora, bondosa, sábia. Não era difícil lhe arrancar um sorriso e logo se contagiar com sua gargalhada. Com ela, a resposta era rápida, mas sempre nos envolvia com seu jeito meigo, atencioso, dedicado, de quem sempre queria ajeitar a todos. 


Foi boa companheira, mãe, avó, bisavó, irmã, tia, amiga, comadre, vizinha, costureira, bordadeira e muito religiosa. Foi casada com Jose de Santana, conhecido por Zé Magro (falecido em 2010), com quem compartilhou 60 anos de vida matrimonial. Teve cinco filhos, 16 netos e 15 bisnetos. Lembro-me de quando ainda pequena costumava ir brincar na casa da vó com minhas primas. Da merenda que ela preparava pra gente, do quintal cheio de plantas que ela cuidava com tanto zelo. Do pé de manga onde costumávamos subir e aprontar algumas estripulias, temendo que a vó descobrisse.


Além de costureira, ofício que praticou por muito tempo na velha máquina de costura encostada na copa da cozinha, Vó era uma bordadeira de primeira. Ela sempre dizia que aprendeu a bordar ponto cruz quando tinha 12 anos. Um legado que não guardou apenas pra si. Na década de 1990, juntamente com outras mulheres da comunidade, foi voluntária num antigo Projeto da Paróquia Nossa Senhora Aparecida, ensinando muitas pessoas a bordar ponto cruz. Já em casa, tínhamos como mestra uma das mais exímias bordadeiras de São Desidério. Uma arte que foi passada para as netas. As primeiras aulas eram reservadas a pequenos pedaços de pano que aos poucos eram preenchidos, e os desenhos ganhavam formatos de laranjas, maçãs, peras, quadrados, losangos. Paciente para ensinar, ela exigia que o avesso do bordado fosse limpo. Só depois disso é que estávamos preparadas para fazer bordados em guardanapos, panos de pratos e posteriormente bordar nomes em toalhas de banho, fase que já assinalava progresso. 

Àquelas que se dedicaram mais, alçaram desafios maiores. Bordados em almofadas, caminhos de mesa, jogos de cozinha, entre outros. Mas talvez o sonho das netas seria dominar bordados mais difíceis, como as enormes toalhas de mesa, denominadas de 'toalhas de banquete' que a vó tanto fazia e que lhe eram exigidos meses de trabalho e dedicação. Uma das características de seu bordado é que o fazia com amor e capricho, motivos que a fazia receber muitas encomendas de outras cidades e até mesmo de outros estados. O bordado sempre deu o tom da ornamentação na casa da vó, seja por sobre o fogão, da mesa da sala, da antiga prateleira da cozinha, no aparador do filtro, nas almofadas, nos guardanapos da estante.



E como esquecer a devoção por Santo Reis e as lapinhas de Natal, de vê-la montar o presépio. Na primeira sala da casa, no dia 24 de dezembro os sofás davam lugar a lapinha. Ainda sinto o cheiro da cola feita da tapioca que ela fazia a seu modo para fixar o papel madeira rosa no antigo caixote de madeira e que posteriormente era preenchido com as plantas, a areia, palha, os santos e muitas luzes. Mas o ‘Menino Deus’, como ela chamava, só era colocado na lapinha à meia noite. Com o passar dos anos, assumimos de vez a função de montar a lapinha para ajudar a Vó. Das primeiras vezes ela ficava muito nervosa porque ainda não dominávamos os traquejos do tal ofício e assim ela questionava: 

- Ô menina cadê a boca da lapinha? Vocês não sabem fazer lapinha não. Deixa que eu faço, eu só vou colocar o santo mesmo!

A ‘boca da lapinha’ que ela se referia tratava-se de um formato triangular, seja por meio de plantas ou do próprio papel que ao final se configurava em uma gruta, deixando transparecer uma entrada com destaque para onde se apresentam os santos. Nos anos seguintes ela até ficou mais calma e deixou que tomássemos conta de vez da tarefa, mas sempre dando seus ‘pitacos’ de longe. Na verdade ela sempre dizia que todo ano só ia colocar o santo mesmo. Quando terminava a montagem ela sempre aprovava o resultado final:

- Mas ficou linda minha lapinha! Admirava.


As rezas na lapinha ocorriam no dia 24 à noite, depois da missa do Galo e no dia 06 de janeiro, dia de Santo Reis, após meio dia. A tradição da lapinha de Natal ela sempre dizia ter iniciado ainda menina, quando começou a fazer a lapinha por brincadeira. Depois fez uma promessa que foi cumprida por mais de 70 anos. E como ela gostava de receber as rezadeiras em sua casa e de cantar os benditos ‘Chegai Jesus, chegai’, ‘Viva o santo Nascimento’, ‘Noite Feliz’, ‘Dizei nos pastores’, ‘Viva Menino Deus’, do ‘Adeus minha lapinha cercada de flor’, e de tantos outros.





Dias antes da lapinha, era feita toda uma preparação. Uma delas, se tratava de fazer os biscoitos, a pêta e o ginete e os bolos. No fundo da casa da Vó havia um forno à lenha. No dia de fazer os biscoitos, o forno era aceso pela manhã, logo cedo e durante todo o dia era um grande movimento. A vizinhança logo percebia que na casa da Si era dia de fazer biscoito. Primeiro eram feitos as pêtas. Lembro de pegar a peta já assada e quente e molhar na massa crua que ficava no tacho de alumínio. Depois era a vez de reunir as netas e quem mais estivesse presente para ajudar a fazer o ginete, um biscoito doce. Esse era um dos momentos mais esperados. Sentadas em uma roda, cada uma com sua devida fôrma – que geralmente eram latas de sardinha vazias furadas ao centro e pontas picotadas para baixo – o bolo de massa era pressionado e ganhava formato de ‘S’ e aos poucos preenchia as bandejas no colo. Quando a Vó saia de perto, essa era a oportunidade para saborear rapidamente a deliciosa massa crua. E quando ela retornava lá estávamos com as bochechas alteradas tentando disfarçar os bolos de massa. E era nos repreendia: 

- Por isso que o ginete não rende aqui! E riamos.

Ao fim da tarde, após assar os ginetes, quando o forno já não estava tão quente, era hora de assar os bolos de milho e de puba. Outro preparativo para a lapinha era a batida de jenipapo. A Vó ia na Fazenda Amaralina, onde morava sua cunhada e comadre Bia para apanhar os jenipapos. Fazia as batidas e as reservava em frascos vazios de refrigerantes na geladeira para servir na noite de 24. A gente sempre tomava escondido da Vó quando íamos rezar à noite na lapinha no intervalo entre os dias 24 e 06.




A religiosidade era uma de suas marcas. Católica fervorosa e dizimista, sempre teve muita devoção pelo Divino Espírito Santo e por Nossa Senhora Aparecida, festejos tradicionais da cidade que ela acompanhava desde a infância. Enquanto pode, nunca faltava uma missa e sempre frequentava as rezas do Ofício de Nossa Senhora na Igreja Matriz, nas noites de sábado. A oração do ‘Pranto de Nossa Senhora’ ela nunca esquecia de rezar na Sexta-feira da Paixão. Foi com ela que comecei a ir à igreja quando ainda era pequena. Sua caminhada de fé foi um exemplo para seus familiares. Lembro de vê-la rezar o terço e com ela aprendi a rezá-lo também.

Em julho de 2016, após uma queda em casa, ela fraturou o fêmur direito e esteve hospitalizada. Nas noites em que estava com ela no hospital, sempre pedia para rezarmos o terço que ficava em seu leito. A sua força permitiu vencer três pneumonias nesse período e ela retornou para sua casa, embora com a difícil tarefa de conviver com as limitações físicas mas feliz por reencontrar parentes e amigos que sempre iam visita-la e tomar um café. Em maio de 2018 foi novamente hospitalizada com pneumonia, e mais uma vez conseguiu se recuperar mostrando sua força. Nesse período de pandemia, as circunstâncias do momento exigiam mais cuidado. Foi preciso uma mudança provisória de lar. Embora não estivesse em seu cantinho, tudo o que foi feito, foi com muito carinho, pensando em sua saúde, seu bem estar, sua segurança. Após mais uma internação ela não resistiu à pneumonia e nos deixou em 16 de abril, aos 89 anos.




As imagens dos últimos momentos ao seu lado, no leito, rezando o terço pra senhora ficar boa, de passar a mão por sua cabecinha branquinha, de segurar a sua mão cada vez que a senhora chamava, de cantar ‘Cura Senhor onde dói’ e outras canções que a senhora gostava para te acalmar e na esperança de te ver melhor, para voltar logo para casa. Mas prefiro ficar com as lembranças dos momentos felizes. Das oportunidades de te dar banho, de botar na cama para dormir, de cortar o seu cabelo escondido, do seu cheirinho, de suas risadas, de aprontar algumas brincadeiras para tirar fotos só pra te ver sorrir, dos desenhos que a senhora gostava de pintar, das leituras em voz alta, de passar para te ver, para pedir a ‘bença’ e saber como estava, de sentar no batente da porta da rua em sua companhia tomando café, dos teus conselhos, suas histórias, ensinamentos, sua alegria, sua fé! Agradeço a Deus por ter tido a oportunidade de ter uma avó tão maravilhosa. Ficam os bons exemplos e muita, muita saudade!







Texto e fotos: Ana Lúcia Souza



5 comentários:

  1. Que história de vida magnífica, e o seu relato nos deixa emocionados!!
    Que brilhe para ela a luz de Cristo!!

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  2. saudade demais era como uma vó pra mim foi o prazer enorme conhecer dona do fica a lembrança de uma pessoa tão boa como ela foi bem zelada ana e muita a manda por todos

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  3. Lindíssima história. Dona Si foi um grande exemplo de mulher...Sempre tive um grande carinho e admiração por ela...Exemplo a ser seguido. Descanse em paz minha amiga.

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  4. Que história gostosa de ler, Ana. Lia, ria e chorava kkk. Parabéns por ter cuidado tão bem sua avó. Que brilhe para ela a Luz de Cristo

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  5. Belíssima história Ana Lúcia!Minha madrinha teve muita sorte de uma neta cuidadosa, que sobe da muito carinhoso enquanto ela precisou. Deus conforte seu coração. ❤

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