terça-feira, junho 30, 2020

Todos os nossos ontens (Natália Ginzburg)


"O pai sempre dissera que era preciso derrubar os fascistas, que ele teria sido o primeiro a escalar as barricadas no dia da revolução. Dizia que seria o dia mais lindo de sua vida. Mas sua vida passara sem aquele dia. Anna imaginava que era ela agora que estava nas barricadas com Ippólito e Danilo, atirando com o fuzil e cantando". 

Lembranças, histórias, gravidez indesejada, tentativa de aborto, suicídio, guerra e conflitos familiares marcam o livro escolhido para encerrar as leituras de junho do Analítica. Optei pela sexta obra da Tag Experiências Literárias modalidade Curadoria, uma ficção italiana escrita pela autora Natália Ginzburg em 1952. 'Todos os nossos ontens', não poderia ser o título mais sugestivo para o livro. Narrado em terceira pessoa, predomina a narrativa de Anna, suas lembranças e histórias que têm por cenário a região do Norte da Itália.

O livro tem 327 páginas e divide-se em duas partes, que envolve a personagem Anna e seus irmãos, Ippólito, Concettina e Giustino que são criados pela governanta, a senhora Maria. O pai deles escreve um livro de memórias intitulado 'Nada além da verdade' que critica o Facismo, regimo político da época. "O pai ria e esfregava as mãos pensando que o rei e Mussoline não sabiam de nada, e em uma pequena cidade da Itália um homem escrevia páginas tremendas sobre eles", páginas 16 e 17. 


Também são mostrados os laços da família protagonista com os personagens da família vizinha, composta por Emanuelle, Amália e Giuma, integrantes de uma família industrial rica, dona da fábrica de sabão. Outros dois personagens também são importantes na narrativa, Cenzo Rena um senhor culto, antifascista e que luta em favor dos camponeses e o judeu Franz que se casa com Amália. 

Anna é uma garota que se veste com vestidos feitos de pano de cortina, muito sonhadora e que queria fazer revolução. Ela vive um relacionamento amoroso com Giuma e uma gravidez indesejada a deixa desesperada. Abandonada por Giuma e decidida a fazer um aborto, ela desiste da ideia após receber uma proposta de casamento de Cenzo Rena, que é bem mais velho que ela e está disposto a ajudá-la. "Perguntou-lhe se queria se casar com ele. Assim não precisaria jogar a criança fora. As ruas estavam cheias de crianças e podia até ser que se tornassem homens de cara dura e má, mas mesmo assim achava triste que se pudesse jogar fora assim uma criança", página 163.

A Segunda Guerra Mundial, ascensão e declínio do Fascismo perpassam o enredo e fundamenta as discussões e ações narradas sob as perspectivas dos personagens.  "...barbeava-se muito raramente desde que os alemães entraram na França. (...) teria imaginado realmente que faria a revolução com Emanuelle e Danilo, na Itália, na Alemanha, sabe-se lá que grandes revoluções tinham imaginado fazer", página 133. "Giustino às vezes pensava que gostaria de ir para a guerra, não teria ficado impressionado ao atirar onde todos atiravam, era sempre melhor do que ficar em casa com a senhora Maria...", página 171.

Outro momento de destaque na narrativa é o trecho que assinala o suicídio do jovem Ippólito para fugir da guerra, pois ele temia que os alemães invadissem a França. "Entrando no jardim público viram ao redor de um banco um grupinho de pessoas e dois policiais, então se puseram a correr. No banco estava Ippólito sentado morto, e ao seu lado no chão o revólver do pai", página 145. Esse episódio é marcante para o atual momento de Anna. "Pensava que ela não tinha pai nem mãe, e tinha encontrado o irmão morto em um banco de jardim e tinha uma criança dentro dela", página 157.  



O casamento de Anna com Cenzo Rena foi fundamental para a sua proteção e da criança. Até o último momento Cenzo Rena planejou que ela e a criança saíssem da cidadezinha de Borgo San Costanzo e fossem para um lugar mais seguro, distante da guerra. Ele já previa o risco que corriam ajudando o judeu Franz a se esconder dos alemães. A perseguição e morte desses dois personagens é outro momento de destaque no enredo. "Em seguida foram levados para a praça da Prefeitura e Franz foi jogado contra o muro e deu-se ordem para atirar e Cenzo Rena cobriu o rosto com as mãos. E ele também foi jogado contra o muro e ouviu o barulho da sua cabeça no muro e sinos e vozes. E assim morreram Cenzo Rena e Franz", página 304.

A narrativa também destaca os ideais de luta e de resistência ao Fascismo. "Giustino continuava no Norte e soubera que fazia parte dos resistentes e se chamava Balestra. E Danilo estivera um pouco em Roma e depois seguira para o Norte, havia saltado de um avião de paraquedas e como resistente se chamava Dan", página 310.

No final do livro a escritora frisa sobre as angústias dos personagens que sobrevivem e questionamentos acerca do futuro incerto trazidos agora pelo clima do período de pós-guerra. "E riram um pouco e eram muito amigos os três juntos, Anna, Emanuele e Giustino, e estavam muito contentes de serem eles três os que estavam pensando em todos aqueles que tinham morrido, e na longa guerra e na dor e nos clamores e na longa vida difícil que tinham agora pela frente e que estava repleta de coisas que não sabiam fazer", página 320.

A linguagem da autora é simples e as ideias são bem traçadas no decorrer dos capítulos. Gostei do livro porque apesar de ser ficção, as histórias dos personagens são atreladas a um contexto histórico de guerra que a autora tão bem expõe através das memórias e sentimentos e de todo um lado triste que é predominante quando se fala em guerra, além também da mensagem de resistência e de luta antifascista que é passada e encorpada pelos personagens, sendo muita dessas histórias baseadas em fatos vividos pela própria autora. 

Palavras-chave: Passado - Memórias - Histórias - Guerra - Antifascismo - Resistência - Luta - Perdas;

Texto e fotos: Analítica

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