"...romances históricos sobre as aventuras de guerreiros otomanos e um livro sobre sonhos. Uma passagem deste último haveria de mudar minha vida para sempre", página 15. A mulher ruiva, de Orhan Pamuk, primeiro livro de 2021 indicado pela Tag Livros Experiências Literárias que tem por curador Milton Hatoum, é a obra que norteou as discussões durante o 18º Encontro da Tag Curadoria Barreiras realizado em formato virtual na segunda-feira, 08 de fevereiro. Como um de seus associados, o blog Analítica participou do encontro.
Partindo do ano de 1984, a primeira parte relata a infância e adolescência de Cem. Sua convivência na farmácia da família, a relação com os pais, as conversas partidárias dos amigos do pai em sua casa, perseguição política, prisão e ausência da figura paterna, as dificuldades financeiras, o primeiro emprego na livraria e o sonho de ser escritor. Ao concluir o Ensino Médio ele deseja entrar para a universidade, mas se muda para Gebze com a mãe onde passam a morar de favor na casa de uma tia. Sua história começa a mudar ao trabalhar em um pomar, onde ao observar operários que estavam abrindo um poço conhece o mestre cavador de poços Mahmut e surge a proposta de ser aprendiz de cavador de poços em uma cidadezinha chamada Ongoren. Com o mestre ele desenvolve uma relação de confiança como se fossem pai e filho e Mahmut o trata como 'pequeno gentleman'. Por vezes Cem conta histórias da mitologia grega ao mestre, que fica impressionado com a tragédia de Édipo Rei.
De dia cavando poço, à noite, passeios na cidadezinha de Orgoren. Nesse contexto entra em cena a figura da Mulher Ruiva, que estava de passagem na cidade com uma trupe de teatro. Ela se torna o principal pretexto para Cem ir todas as noites à cidade. "Havia alguma coisa estranha e muito fascinante naquela mulher", página 34. Uma dessas noites lhe reserva o primeiro contato com a tal ruiva, que é casada e também demonstra interesse no garoto. Um dos momentos mais marcantes destaca a primeira noite de amor entre o garoto de 16 anos e a mulher ruiva que aparentava ter quase o dobro de sua idade. A primeira parte termina após o acidente do mestre no fundo do poço e a fuga de Cem para sua terra natal, Istambul, sem saber se o mestre está vivo ou morto.
Longe de seu ofício de 'aprendiz de cavador', Cem agora é promovido a gerente na livraria Deniz e cursa faculdade de geologia. "Por isso escrevi na ficha de inscrição 'geologia'. Minha mãe notou que o aprendizado com o cavador de poços deixou uma espécie de marca em mim", página 141. Nessa segunda fase temos um Cem constantemente perseguido por um sentimento de culpa, episódio que o faz voltar a comparar sua própria história com a mitologia grega, na figuras de Édipo Rei, e turca, através dos lendários Rostam e de seu filho Sohrab, personagens do livro de Shahnameh.
Algumas reviravoltas marcam a trama de Cem no decorrer dessa segunda fase. Ele se casa com Ayse e juntos fundam uma grande empresa empreiteira que batizam de Sohrab, nome em alusão ao filho que não conseguiram gerar. A reaproximação, morte do pai e a descoberta de que ele também tivera um envolvimento com a mulher ruiva anteriormente. O surgimento de um bilhete que ele recebe de alguém que assina como seu filho e que após investigação tem resposta positiva de um teste de paternidade. O retorno a cidadezinha de Orgoren para fazer negócios e ao mesmo tempo conhecer o filho. A informação de que de tanto insistir em cavar mestre Mahmut enfim encontrou água naquele poço e que morrera rico, e o reencontro com a mulher ruiva que o revela que é pai do jovem poeta Enver, um aspirante a escritor. "Ele é obstinado e conhece a própria mente, mas também é prepotente. O que lhe falta é uma forte figura paterna que o oriente", página 230.
Muitas surpresas reservam o encontro entre Cem e seu filho e o desejo de vingança é visível no tom do garoto. "Para vingar mestre Mahmut...para fazer você pagar por ter seduzido minha mãe...", página 255. A tragédia que encerra a segunda parte do livro responde ao prenúncio da ilustração da capa do livro: o filho mata o pai com um tiro no olho parafraseando a morte de Rostam por seu filho Sohrab. "A vida imita o mito", página 287.
Já no início da terceira parte o autor engana o leitor acerca de quem é o narrador dessa última fase. A narrativa segue por outra perspectiva que a princípio parece ser sob a ótica da mulher ruiva mas que entende-se tratar do relato do próprio filho Enver, que na prisão escreve sua própria versão dos fatos como tentativa de que essa dissertação seja favorável à sua liberdade. Também no trecho final do livre achei interessante a frese em que o autor faz uma referência a narrativa inicial, como se fosse também um dos fundamentos utilizados por Enver e que contribuiria para inocentá-lo. "Assim, todo mundo, e não apenas o juiz, vai entender o que você está procurando dizer. Lembre-se: seu pai também sempre desejou ser escritor", página 294.
Desde o início e diante das constantes referências às tragédias citadas já se poderia imaginar o final que o livro reservava. A figura da mulher ruiva como manipuladora de toda a história, o seu envolvimento primeiro com o pai depois com o filho Cem, de sua ambição que de certa forma influenciou nas atitudes do filho, que já sofria a ausência paterna, contribuiu também para o desejo de Enver se vingar do pai. Achei criativa a trama construída. Não gostei muito da primeira parte, a narrativa é um pouco repetitiva e cansativa até metade da segunda fase, quando a história ganha mais corpo e tudo vai se encaixando e fazendo sentido às constantes inserções do autor ao citar Dostoiévski, Édipo Rei, Rostam e Sohrab e principalmente por dar margem para o leitor viajar na imaginação.
Palavras-chave: Escritor - Aprendiz - Poço - Geologia - Pedofilia - Memória - Passado - Sucesso - Ambição - Castigo - Mitologia - Real - Vingança.
Por Analítica
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