"A filosofia parece só tratar da verdade, mas talvez só diga fantasias, e a literatura parece só tratar de fantasias, mas talvez diga a verdade. (...) dê espaço ao seu novo eu hegemônico, deixe-o ser, precisa nascer, precisa se afirmar". Entre efemérides e necrológios que escreve para a editoria Cultural do Jornal Lisboa, o jornalista doutor Pereira, afirma tomar uma limonada enquanto delicia uma boa omelete no Café Orquídea que fica próximo de sua sala de redação situada à Rua Rodrigo Fonseca, onde trabalha sozinho, longe da redação principal do jornal.
Doutor Pereira é um homem solitário, não tem família, não teve filhos e costuma conversar com o retrato da esposa falecida. Quase não tem amigos, a não ser o doutor Cardoso, Manuel, o garçom do Café Orquídea, Monteiro Rossi seu estagiário e a namorada Marta, uma senhora que faz a faxina de seu apartamento ou Celeste a zeladora do edifício onde mora sozinho. "...o senhor vive projetado no passado, o senhor está aqui como se estivesse em Coimbra trinta anos e como se sua mulher ainda fosse viva, se o senhor continuar assim, irá se tornar uma espécie de fetichista das lembranças, talvez comece a falar com o retrato de sua mulher. Pereira secou a boca com o guardanapo, baixou a voz e disse: eu já faço isso, doutor Cardoso. Eu vi o retrato de sua mulher em seu quarto, na clínica, disse, e pensei: este homem fala mentalmente com o retrato de sua mulher, ainda não elaborou o luto, foi isso mesmo que pensei, doutor Pereira", página 119.
A história se passa em Portugal de 1930. Desinteressado por política, doutor Pereira vive com as lembranças do passado. É católico e seu maior passa tempo é escrever os necrológios e efemérides para o jornal que trabalha ou fazer traduções do romance de autores do século 19. Monteiro Rossi é o estagiário contratado por Pereira e encarregado de escrever os necrológios antecipados de escritores famosos para a sessão de obituário do jornal. Mas o jornalista não fica satisfeito com os textos do estagiário, que se envolve com questões políticas, some por um tempo e um final surpreendente lhe é reservado no seu retorno e abrigo dado por Pereira em seu apartamento.
É o diretor do jornal, doutor Cardoso que chama a atenção de Pereira para que ele não escreva sobre autores franceses, mas sobre autores portugueses por se tratar de um jornal português. Cardoso também o aconselha a se desapegar do passado e viver mais o presente. "...não está escrito em lugar nenhum que este país seja para o senhor, e depois aqui há lembranças demais, procure jogar no bueiro seu superego e dê espaço a seu novo eu hegemônico, talvez possamos nos ver em outras ocasiões, e o senhor será um homem diferente", página 120.
É o meu primeiro contato com o autor Antonio Tabucchi. O designer gráfico do livro é interessante, a capa traz alguns elementos em alto relevo em referência aos azulejos portugueses e imagens de elementos presentes na rotina do personagem central, Pereira. O livro também apresenta algumas receitas culinárias que aparecem durante a histórias e que são preferências do personagem Pereira.
No enredo, embora de ficção, o autor também não deixa de pincelar flashes de fatos históricos pertinentes para entender tópicos relevantes e que valorizam a narrativa. A exemplo da referência a dois momentos: o Salazarismo de Portugal (período ditatorial em Portugal, de 1933 a 1974, conhecido como Estado Novo. O termo “salazarismo” se refere a António de Oliveira Salazar, chefe de governo de Portugal nesse período que teve fim com a Revolução dos Cravos e originou a reconstrução da democracia portuguesa), e do Fascismo da Itália (movimento político instituído por Benito Mussolini em 1922. Um governo autocrático, centrado na figura do ditador Mussolini que defendia a superioridade da nação, estado e raça).
A leitura foi bem tranquila, fluiu rapidamente, os capítulos são curtos, que é algo que me atrai muito e a escrita do autor é simples, somente em alguns poucos momentos se revela técnica. Outra característica marcante da narrativa é que o texto, além de se apresentar em forma de um depoimento, predomina também a variação entre o sujeito (Pereira) e o verbo (afirma), fazendo alusão ao título do livro. Por vários momentos o leitor se depara com essa variação nos períodos: Afirma Pereira, ou Pereira afirma ou somente afirma, em que o autor utiliza dessa máxima comum à linguagem jornalistica.
Gostei desse livro do mês de agosto da @taglivros, uma experiência literária agradável que estou vivendo este ano e que até o momento tem sido bastante positiva, que tem me proporcionado a possibilidade de conhecer outros autores, contribuído para ampliar meu conhecimento de mundo, meu vocabulário, minha escrita e também para diversificar minhas leituras.
Texto e foto: Analítica
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