"Talvez esse lugar seja aqui, onde estou agora, submersa na essência do silêncio a entoar uma canção sem melodia nem palavras, livre do peso do meu próprio corpo, livre de mim mesmo", p. 09.
Uau! Que livro maravilhoso e que história intensa! Em 'O pássaro secreto', o leitor encontra uma escrita simples e ao mesmo tempo poética, agradável de ler, e muito envolvente.
A obra, vencedora do Prêmio Kindle de Literatura 2021, de autoria da paraibana Marilia Arnaud, é o primeiro contato do Analítica com a escritora e indicação da Tag Livros de maio, em homenagem ao mês dedicado a Literatura Brasileira. Narrado em 1ª pessoa, conhecemos Aglaia Negromonte, que nos conta suas próprias vivências, angústias, medos, ansiedade, carências, tristezas, desilusões, injustiças, ciúmes, revolta e decepções.
Há presença de fortes relatos marcados por distúrbios alimentares, de transtorno de ansiedade e depressão da personagem central que se agravam, quando Aglaia vê sua rotina alterada com a chegada de Thalie, fruto de um relacionamento extra-conjugal do pai Heleno Negromonte. "Éramos um conjunto de cinco, meu pai, minha mãe, Eufrosine, Heitor e eu, e não mais do que de repente nos tornamos seis. Em sua perfeição, a matemática não explicava Thalie", p. 32.
A obra traz uma narrativa que lembra os moldes de um diário, e nos presenteia com depoimentos de 'memórias afetivas'. Algo marcante são os relatos de Aglaia a respeito de seu relacionamento próximo com avó Sarita e das recordações vividas no sítio Saudade, passagens que agregam descrições minuciosas com poesia, ternura, cumplicidade que faz a gente sentir como se estivesse lendo algo muito familiar, que já vivi.
"No monitor ao lado da cama, umas ondinhas eletrônicas mostravam o ritmo pulsante do seu coração. Um coração que a qualquer instante poderia deixar de funcionar. E a menina que eu era sabia que corações se cansavam de bombear sangue e, quando isso acontecia, não perguntavam a seu dono se era hora de parar. Simplesmente paravam. Eu não fazia ideia de como sobreviveria sem minha avó em um mundo de tantos perigos e desafetos. [...] O certo é que avós de meninas como eu não deveriam morrer nunca. Aproximei-me e segurei-lhe uma das mãos [...] como o rosto de alguém que não reconhece quem está á sua frente. Sorriu-me brevemente, mas em seus olhos havia uma bruma, a dos olhos dos cegos, e eu me perguntei se era por ali que a vida escapava", p.176.
De repente Aglaia começa a perceber que sua relação com a avó e principalmente com Demian, o amigo que ela amava, ser abalada com a presença de Thalie, assim como tudo a sua volta, que parece ter desestabilizado com a chegada de sua irmã. "Por que as coisas que mais tememos que aconteçam, acontecem sem que possamos fazer nada para evitá-las?", p. 131.
O livro traz reflexões sobre a percepção de mundo de Aglaia, que hora se comprimi diante das injustiças que não lhe agradam, hora tenta chamar atenção de todos a sua volta, mesmo que de formas absurdas. Aglaia muitas vezes pensa que tudo gira em torno de si, não aceita mudanças, não aceita dividir a atenção e confiança das pessoas mais próximas, que as coisas simplesmente são como são e que muitas vezes não se pode mudar algo só porque não gosta, e por também se cobrar pelos erros dos outros ou sobre aquilo que acha ser errado, e por isso ela tem um senso de fazer justiça.
Apesar do fim que teve Aglaia, como tudo transcorreu e de como ela mesma contribuiu para que fosse assim, penso que Aglaia só queria ter sido mais ouvida, compreendida e melhor acolhida pela família e amigos, assim como milhares de pessoas que passam pelos mesmos problemas que ela, e fazendo alusão da situação de Aglaia com uma máxima que vi em um filme, 'muitas vezes a dor precisa ser compartilhada para ser compreendida'.
No final há uma descrição revela qual pássaro secreto se trata o enredo e sua relação com a personagem. "Morrer não doía nem um pouco. Ainda estou aqui. Sou uma Fênix. Ardi no fogo e ressurgi na pureza das minhas próprias cinzas", p. 266.
Gostei muito do livro e da escrita da autora, e também do projeto gráfico. A cor vibrante da luva em contraste com a capa do livro em tom preto que traz uma ilustração de uma mulher e de pássaros, logo remetem à figura de Aglaia, algo que complementa muito a história. O livro influenciou a conhecer outros livros da autora, Marilia Arnaud, a exemplo de 'Liturgia do fim' e para ler mais sobre Literatura Brasileira. Li e recomendo!
Para a produção das fotos, usei como plano de fundo, árvores e ambientes característicos da Orla da Barragem em São Desidério.
Por Analítica
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