Alain Mabanckou, é um dos autores mais renomados da contemporaneidade, e 'Moisés negro' é um romance de ficção congolesa que aborda uma trajetória histórica com início na década de 1970, quando o personagem central, Moisés, é abandonado na porta de um orfanato, pouco depois de nascer. A história tem por cenário Loango, na República do Congo. Narrada em primeira pessoa pelo próprio Moisés, a história se configura em um relato da 'memória adulta de uma experiência juvenil'.
A obra é dividida em duas fases. Na primeira, destaca desde a chegada ao orfanato, onde ele é batizado por um padre a quem chama de Papai Moupelo. "Tudo começou nessa época em que, adolescente, eu me perguntava a respeito do sobrenome que Papai Moupelo, o padre do orfanato de Loango, tinha me dado: Tokumisa Nzambe po Mose yamoyindo abotami naboka ya Bakoko. Esse longo sobrenome significa, em lingala, 'Demos graças a Deus, o Moisés negro nasceu na terra dos ancestrais', página 09.
Para defender seu melhor amigo Bonaventure Kokolo, Moisés coloca pimenta na comida de dois internos, e a partir de então recebe o apelido de 'Pimentinha'. "...naquela noite em que me levantei na ponta dos pés para ir até o bloco seis, onde espalhei essa pimenta em pó na comida que esses gêmeos glutões guardavam debaixo das beliches e comiam por volta da meia noite ou uma da manhã", página 61.
A princípio, de origem religiosa, o orfanato ganha tônus estatal após a independência do país.O padre e a faxineira Sabine Niangui, são as pessoas por quem Moisés desenvolve uma relação de maior afeto dentro do orfanato, e que por reflexos das influências políticas do país, posteriormente os dois simplesmente somem da instituição, episódios que fazem Moisés sofrer. A situação se agrava ainda mais com a chegada do novo diretor Dieudonné Ngoulmoumako e sua administração de ditador, quando o país adota o regime Socialista.
A segunda fase caracteriza-se pela fuga de Moisés e seus companheiros para a cidade de Point-Noire. Agora vivendo na rua como ladrões, em contato com prostitutas e sempre fugindo da figura do Prefeito François Makélé, eles conhecem outra realidade totalmente diferente do orfanato. "Chega um dia em que nos olhamos no espelho, não há para onde ir, porque estamos em um beco sem saída. E depois damos o próximo passo, oferecemos nosso corpo com um sorriso vendedor a alguém que está passando na rua, porque é preciso atrair como em todo comércio", disse para Moisés a dona do bordel.
Desde cedo Moisés aprendeu a se conformar com a ausência da família e com o fracasso. Agora na vida adulta, ele sente os reflexos de uma vida marcada por muitos momentos de tragédias, perdas, exclusão, alcoolismo que contribuíram para que ele convivesse com problemas psicológicos. Algumas vezes ele ainda tenta reconstruir sua vida e seguir com esperança confiante nas mudanças. "Não, eu não queria mais olhar para trás. Assumia então meu egoísmo e vivia minha liberdade de cachorro vadio em uma cidade que parecia esmagar tudo. Mas eu tinha que sobreviver, e faria de tudo para isso, pois, depois de três anos dedicado a entender os segredos dessa aglomeração labiríntica, descobri sozinho os lugares mais populares".
A narrativa finaliza com Moisés aos 40 anos fadado à loucura e à prisão, talvez como uma alternativa que o autor utiliza pela punição do personagem por seus atos. Também percebe-se através do discurso do protagonista na prisão, que ele retorna ao início da narrativa e faz alusão ao orfanato e ao melhor amigo Kokolo, como se pode ver nesse trecho da página 213. "A lembrança do orfanato de Loango atravessou meus pensamentos e achei por um instante que esses dois guardas eram Vieux Koukouba e Petit Vimba".
É uma história triste, um assunto comum que é a realidade de muitos meninos e meninas que sofrem desde cedo o abandono parental e que muitas vezes não conseguem superar os desafios e vencer. Mas a forma como a narrativa foi se encaminhando e na segunda parte do livro onde tudo vai se encaixando, já se podia imaginar esse final.
"Ele se chama Ndeko Nayoyakala e tem uns quarenta anos como eu. (...) Ele também tem problemas no cérebro, e assim que me devolveu meu manuscrito, eu o agarrei e descobri que ele não deixara de corrigir em vermelho um errinho aqui, um anacronismo ali. Discutimos por causa de uma vírgula de nada que ele achava estar no lugar errado e que eu queria deixar como estava", página 219.
Quanto ao projeto gráfico, a capa do livro chama a atenção pela ilustração que é bem sugestiva e casa com o apelido dado ao personagem principal 'Pimentinha'. A escrita em si do autor é interessante, a leitura não é densa e o assunto abordado no livro dá margem para outras leituras complementares, a exemplo das obras: Capitães de areia, de Jorge Amado e O Ateneu, de Raul Pompéia, que entram para a lista de leitura do Analítica.
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