Avó é como segunda mãe. São muitas as lembranças que tenho da Vó Si. A
única avó que conheci. Na sua humildade, Sizaltina Dourado de Santana, ou Dona
Si, como era carinhosamente conhecida, foi exemplo de mulher guerreira,
alegre, acolhedora, bondosa, sábia. Não era difícil lhe arrancar um sorriso e logo
se contagiar com sua gargalhada. Com ela, a resposta era rápida, mas sempre
nos envolvia com seu jeito meigo, atencioso, dedicado, de quem sempre queria ajeitar a
todos.
Foi boa companheira, mãe, avó,
bisavó, irmã, tia, amiga, comadre, vizinha, costureira, bordadeira e muito
religiosa. Foi casada com Jose de Santana, conhecido por Zé Magro (falecido em
2010), com quem compartilhou 60 anos de vida matrimonial. Teve cinco filhos,
16 netos e 15 bisnetos. Lembro-me de quando ainda pequena costumava ir brincar
na casa da vó com minhas primas. Da merenda que ela preparava pra gente, do
quintal cheio de plantas que ela cuidava com tanto zelo. Do pé de manga onde
costumávamos subir e aprontar algumas estripulias, temendo que a vó descobrisse.
Além de costureira, ofício que praticou por muito tempo na velha
máquina de costura encostada na copa da cozinha, Vó era uma bordadeira de
primeira. Ela sempre dizia que aprendeu a bordar ponto cruz quando tinha 12
anos. Um legado que não guardou apenas pra si. Na década de 1990, juntamente
com outras mulheres da comunidade, foi voluntária num antigo Projeto da
Paróquia Nossa Senhora Aparecida, ensinando muitas pessoas a bordar ponto
cruz. Já em casa, tínhamos como mestra uma das mais exímias bordadeiras de
São Desidério. Uma arte que foi passada para as netas. As primeiras aulas
eram reservadas a pequenos pedaços de pano que aos poucos eram preenchidos, e
os desenhos ganhavam formatos de laranjas, maçãs, peras, quadrados, losangos.
Paciente para ensinar, ela exigia que o avesso do bordado fosse limpo. Só
depois disso é que estávamos preparadas para fazer bordados em guardanapos,
panos de pratos e posteriormente bordar nomes em toalhas de
banho, fase que já assinalava progresso.
Àquelas que se dedicaram mais,
alçaram desafios maiores. Bordados em almofadas, caminhos de mesa, jogos de
cozinha, entre outros. Mas talvez o sonho das netas seria dominar bordados mais
difíceis, como as enormes toalhas de mesa, denominadas de 'toalhas de banquete' que a vó tanto
fazia e que lhe eram exigidos meses de trabalho e dedicação. Uma das
características de seu bordado é que o fazia com amor e capricho, motivos que
a fazia receber muitas encomendas de outras cidades e até mesmo de outros
estados. O bordado sempre deu o tom da ornamentação na casa da vó, seja por
sobre o fogão, da mesa da sala, da antiga prateleira da cozinha, no aparador
do filtro, nas almofadas, nos guardanapos da estante.
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E como esquecer a
devoção por Santo Reis e as lapinhas de Natal, de vê-la montar o presépio. Na
primeira sala da casa, no dia 24 de dezembro os sofás davam
lugar a lapinha. Ainda sinto o cheiro da cola feita da tapioca que ela fazia a seu modo para fixar o papel madeira rosa no antigo caixote de madeira e que posteriormente
era preenchido com as plantas, a areia, palha, os santos e muitas luzes. Mas o
‘Menino Deus’, como ela chamava, só era colocado na lapinha à meia noite. Com o
passar dos anos, assumimos de vez a função de montar a lapinha para ajudar a Vó. Das primeiras
vezes ela ficava muito nervosa porque ainda não dominávamos os
traquejos do tal ofício e assim ela questionava:
- Ô menina cadê a boca da lapinha? Vocês não
sabem fazer lapinha não. Deixa que eu faço, eu só vou colocar o santo mesmo!
A ‘boca da lapinha’ que ela se referia tratava-se
de um formato triangular, seja por meio de plantas ou do próprio papel que
ao final se
configurava em uma gruta, deixando transparecer uma entrada com destaque para
onde se apresentam os santos. Nos anos seguintes ela até ficou mais calma
e deixou que tomássemos conta de vez da tarefa, mas sempre dando seus ‘pitacos’
de longe. Na verdade ela sempre dizia que todo ano só ia colocar o santo mesmo.
Quando terminava a montagem ela sempre aprovava o resultado final:
- Mas ficou linda minha lapinha! Admirava.
As rezas na lapinha ocorriam no dia 24 à noite, depois da missa do Galo e
no dia 06 de janeiro, dia de Santo Reis, após meio dia. A tradição da lapinha
de Natal ela sempre dizia ter iniciado ainda menina, quando começou a fazer a
lapinha por brincadeira. Depois fez uma promessa que foi cumprida por mais de
70 anos. E como ela gostava de receber as rezadeiras em sua casa e de cantar os
benditos ‘Chegai Jesus, chegai’, ‘Viva o santo Nascimento’, ‘Noite Feliz’, ‘Dizei nos pastores’, ‘Viva
Menino Deus’, do ‘Adeus minha lapinha
cercada de flor’, e de tantos outros.
Dias antes da lapinha, era feita toda uma preparação. Uma delas, se
tratava de fazer os biscoitos, a pêta e o ginete e os bolos. No fundo da casa da Vó havia um
forno à lenha. No dia de fazer os biscoitos, o forno era aceso pela manhã, logo
cedo e durante todo o dia era um grande movimento. A vizinhança logo percebia
que na casa da Si era dia de fazer biscoito. Primeiro eram feitos as pêtas.
Lembro de pegar a peta já assada e quente e molhar na massa crua que ficava no
tacho de alumínio. Depois era a vez de reunir as netas
e quem mais estivesse presente para ajudar a fazer o ginete, um biscoito doce. Esse era um dos momentos
mais esperados. Sentadas em uma roda, cada uma com sua devida fôrma – que geralmente
eram latas de sardinha vazias furadas ao centro e pontas picotadas para baixo –
o bolo de massa era pressionado e ganhava formato de ‘S’ e aos poucos preenchia
as bandejas no colo. Quando a Vó saia de perto, essa era a oportunidade para
saborear rapidamente a deliciosa massa crua. E quando ela retornava lá
estávamos com as bochechas alteradas tentando disfarçar os bolos de massa. E
era nos repreendia:
- Por isso
que o ginete não rende aqui! E riamos.
Ao fim da tarde, após assar os ginetes, quando o forno já não estava tão quente,
era hora de assar os bolos de milho e de puba. Outro preparativo para a lapinha era a batida de
jenipapo. A Vó ia na Fazenda Amaralina, onde morava sua cunhada e comadre
Bia para apanhar os jenipapos. Fazia as batidas e as reservava em frascos vazios
de refrigerantes na geladeira para servir na noite de 24. A
gente sempre tomava escondido da
Vó quando íamos rezar à noite na lapinha no intervalo entre os dias 24 e 06.
A religiosidade era uma de suas marcas. Católica fervorosa e dizimista,
sempre teve muita devoção pelo Divino Espírito Santo e por Nossa Senhora
Aparecida, festejos tradicionais da cidade que ela acompanhava desde a infância.
Enquanto pode, nunca faltava uma missa e sempre frequentava as rezas do Ofício
de Nossa Senhora na Igreja Matriz, nas noites de sábado. A oração do ‘Pranto de Nossa Senhora’ ela
nunca esquecia de rezar na Sexta-feira da Paixão. Foi com ela que comecei a ir
à igreja quando ainda era pequena. Sua caminhada de fé foi um exemplo para seus
familiares. Lembro de vê-la rezar o terço e com ela aprendi a rezá-lo também.
Em julho de 2016, após uma queda em casa, ela fraturou o fêmur direito e
esteve hospitalizada. Nas noites em que estava com ela no hospital, sempre pedia
para rezarmos o terço que ficava em seu leito. A sua força permitiu vencer três
pneumonias nesse período e ela retornou para sua casa, embora com a difícil
tarefa de conviver com as limitações físicas mas feliz por reencontrar parentes
e amigos que sempre iam visita-la e tomar um café. Em maio de 2018 foi novamente
hospitalizada com pneumonia, e mais uma vez conseguiu se recuperar mostrando sua
força. Nesse período de pandemia, as circunstâncias do momento exigiam mais
cuidado. Foi preciso uma mudança provisória de lar. Embora não estivesse em seu cantinho, tudo o que foi feito, foi com
muito carinho, pensando em sua saúde, seu bem estar, sua segurança. Após mais uma
internação ela não resistiu à pneumonia e nos deixou em 16 de abril, aos 89
anos.
As imagens dos últimos momentos
ao seu lado, no leito, rezando o terço pra senhora ficar boa, de passar a mão
por sua cabecinha branquinha, de segurar a sua mão cada vez que a senhora chamava,
de cantar ‘Cura Senhor onde dói’ e
outras canções que a senhora gostava para te acalmar e na esperança de te ver
melhor, para voltar logo para casa. Mas prefiro ficar com as lembranças dos momentos felizes. Das oportunidades de te dar banho, de botar na cama para dormir, de cortar o seu cabelo escondido, do seu cheirinho,
de suas risadas, de aprontar algumas brincadeiras para tirar fotos só pra te ver sorrir, dos
desenhos que a senhora gostava de pintar, das leituras em voz alta,
de passar para te ver, para pedir a ‘bença’ e saber como estava, de sentar no
batente da porta da rua em sua companhia tomando café, dos teus conselhos,
suas histórias, ensinamentos, sua alegria, sua fé! Agradeço a Deus por ter tido
a oportunidade de ter uma avó tão maravilhosa. Ficam
os bons exemplos e muita, muita saudade!
Texto e fotos: Ana Lúcia Souza