"Espero poder contar tudo a você, como nunca pude contar a ninguém, e espero que você seja uma grande fonte de conforto e ajuda". Com essas palavras escritas em 12 de junho de 1942, Anne Frank assinala o início de suas memórias no seu diário que manteve até 1º de agosto de 1944.
Essa talvez não seja apenas mais uma entre tantas histórias que aconteceram no contexto do Nazismo e da guerra. Fundamentada em relatos de um diário de uma adolescente judia, com pensamentos à frente de seu tempo, e às vezes extremistas, ela viveu conflitos e experiências paralelas ao período da Segunda Guerra Mundial, fato em torno do qual a narrativa transcorre.
Anne inicia seus relatos a partir do momento em que ganha de presente de aniversário de 13 anos um diário, na data de 12 de junho. Ela o considera como uma amiga e passa a chamá-lo de Kitty. A princípio relata fatos do convívio com o pai Otto, a mãe Edit e a irmã Margot.
O enredo passa a ter outro direcionamento quando a irmã Margot recebe uma convocação da SS - Organização Paramilitar ligada ao Partido Nazista e a Adolf Hitler e a família então decide fugir para se esconder em um local chamado Anexo Secreto. "O esconderijo ficava no prédio do escritório de papai. É uma coisa meio difícil de ser entendida por gente de fora, por isso vou explicar. Papai não tinha muita gente trabalhando no escritório, só o Sr. Kugler, o Sr. Kleiman, Miep e uma datilógrafa de 23 anos chamada Bep Voskuijl, e todos estavam informados de nossa ida. O Sr. Voskuijl, pai de Bep, trabalha no armazém junto com dois assistentes, e nenhum deles ficou sabendo de nada", pág. 30.
Em outro parágrafo ela descreve o prédio onde passou a viver a família Frank e os Van Daan, e posteriormente também o médico Albert Dussel, totalizando oito pessoas que se enclausuraram naquele endereço chamado Prinsengracht, 263. "A porta à direita do patamar leva ao Anexo Secreto nos fundos da casa. Ninguém jamais suspeitaria da existência de tantos cômodos por trás daquela porta cinza e lisa", pág. 31.
Durante os relatos Anne descreve a relação de amizade e admiração com o pai, como afirma nesse trecho: "Papai é sempre tão bom! Ele me entende perfeitamente e eu gostaria que algum dia pudéssemos falar de coração para coração sem que eu caia instantaneamente no choro. Mas acho que isso tem a ver com minha idade. Eu gostaria de passar mais tempo escrevendo, mas isso provavelmente acabaria sendo chato", pág. 37. Ela comenta também o relacionamento com a mãe, com quem tinha frequentes desentendimentos e dizia gostar menos que o pai. "Apesar de todas as minhas teorias e meus esforços, sinto falta todo dia e toda hora de uma mãe que me compreendesse. É por isso que em tudo que faço e escrevo, imagino o tipo de mãe que eu gostaria de ser para meus filhos no futuro. O tipo de mãe que não leva a sério tudo que as pessoas dizem, mas que me leva a sério", pág. 148.
Em muitos momentos ela faz declarações do desejo de liberdade, como descrito nesse trecho: "Mas os sentimentos não podem ser ignorados, não importa que pareçam injustos ou ingratos. Gostaria de andar de bicicleta, dançar, assoviar, olhar o mundo, me sentir jovem e saber que sou livre, mas não posso deixar isso transparecer", pág. 148. Em outros, ela se mostra não ter mais esperança. "O fim da guerra ainda parecia tão distante, tão irreal como um conto de fadas. Se a guerra não terminar em setembro, não vou voltar à escola, já que não quero ficar dois anos atrasada", pág. 232.
A confusão de pensamentos também é presente nos relatos da autora. "Algumas vezes me pergunto se alguém algum dia entenderá o que estou dizendo, se alguém deixaria de lado a minha ingratidão e não se importaria se sou judia, e apenas me visse como uma adolescente que precisa demais de uma simples diversão. Não sei, e não poderia falar disso com ninguém, porque tenho certeza de que começaria a chorar", pág. 148.
As transformações do corpo, a descoberta do amor e sexualidade, e as frustrações são declaradas pela adolescente. Em relatos registrados na data de terça-feira, 07 de março de 1944, Anne faz uma retrospectiva de 1942 e 1943, deixando transparecer amadurecimentos vividos pela protagonista da história além de questionamentos sobre valores. "Riqueza, prestígio, tudo pode ser perdido. A felicidade em seu coração pode ser diminuída, mas estará sempre lá, enquanto você viver, para torná-lo feliz de novo", pág. 186.
Anne situa o leitor apresentando detalhes a exemplo da situação alimentar no Anexo Secreto. "...vou dar uma descrição detalhada da situação alimentar, já que está se tornando uma situação difícil e importante, não somente aqui no Anexo mas em toda a Holanda, em toda a Europa e mesmo no resto do mundo....nos 21 meses em que vivemos aqui, passamos por muitos ciclos alimentares - num instante você entenderá o que isso significa. Um ciclo alimentar é o período em que só temos um prato específico ou um tipo de verdura para comer. Durante longo tempo só tivemos endívias. Endívia assim, endívia assado, endívia com purê de batatas, caçarola de endívia com purê de batatas. Depois espinafre, seguido por couve-rábano, salsão, pepinos, tomates, chucrute e por aí vai", pág. 231.
A ideia de escrever apenas para si mudou quando em 1944 ela soube que o governo holandês anunciou que após a guerra recolheria relatos do sofrimento dos holandeses influenciados pela ocupação alemã, e isso incluiria cartas e diários. A partir disso, a adolescente, que tinha o desejo de ser jornalista e escritora, começou a organizar os inscritos e nutrir o desejo de publicar um livro baseado em seu diário, como ela mesma afirma nessa passagem:
"Há muito tempo você sabe que meu maior desejo é ser jornalista, e mais tarde uma escritora famosa. Teremos de esperar para ver se essas grandes ilusões (ou desilusões) irão se cumprir, mas até agora não sinto falta de assunto. De qualquer modo, depois da guerra eu gostaria de publicar um livro chamado O Anexo Secreto. Resta ver se conseguirei, mas meu diário pode servir de base", pág 273.
Como não havia muito o que fazer no Anexo, escrever era um de seus entretenimentos e o desejo de se tornar conhecida através da escrita manteve suas esperanças até a última página de seu diário, acreditando que poderia fazer uma coisa não somente por si, mas também pelos outras. "A não ser que você escreva, não saberá como é maravilhoso; eu sempre reclamava de não conseguir desenhar, mas agora me sinto felicíssima por saber escrever. E se não tiver talento para escrever livros ou artigos de jornal, sempre posso escrever para mim mesma. Mas quero conseguir mais do que isso...não quero que a minha vida tenha sido em vão, como a da maioria das pessoas. Quero ser útil ou trazer alegria a todas as pessoas, mesmo àquelas que jamais conheci. Quero continuar vivendo depois da morte!E é por isso que agradeço tanto a Deus por ter me dado este dom, que posso usar para me desenvolver para exprimir tudo que existe dentro de mim!", pág. 233.
O último registro do diário de Anne data de 1º de agosto de 1944, três dias antes das oito pessoas que se encontravam no Anexo Secreto serem presas por um sargento da SS e membros holandeses da Polícia de Segurança.
Sem um final feliz e apesar do sonho de se tornar famosa não ter sido desfrutado em vida por Anne Frank, a publicação de suas memórias imortalizou sua obra e tornou sua história conhecida por leitores no mundo inteiro.
Por Analítica
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